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22-12-2018        Público

A missão da Universidade na construção da cidadania e antecipação do futuro da sociedade está hoje sob ameaça.

Ao longo da história, e sobretudo com a chegada do Iluminismo, as instituições de ensino superior foram fundamentais nas suas funções formativa, civilizacional e legitimadora do poder das elites. Mas, para além da sua ação institucional, as universidades geraram no seu seio correntes de pensamento científico, filosófico, cultural e político que em diversos momentos se erigiram nas principais forças propulsoras de modernidade, de inovação e de progresso. Embora por vezes cunhadas de “torres de marfim”, conservadoras e resistentes aos ventos de mudança, nelas floresceram diversos ambientes informais e boémios onde se forjaram correntes de pensamento alternativo, revertidas em múltiplos movimentos literários, culturais e políticos, tantas vezes em rutura com o poder instituído. Essa missão da Universidade na construção da cidadania e antecipação do futuro da sociedade está hoje sob ameaça.

Em Portugal, os debates sobre o ensino superior público nas últimas duas décadas giraram à volta da autonomia e da sustentabilidade financeiras das universidades. A redução progressiva da fatia do financiamento público, mesmo em instituições que têm assegurado autonomamente parcelas substanciais do seu orçamento, tem tido como consequência um esforço acrescido das equipas reitorais para imporem uma gestão espartana de recursos, a expensas não só da eficácia dos serviços, mas também de prioridades estratégicas outras. Exemplos disso são o campo científico, a ação social, residências e infra-estruturas, a aposta noutras modalidades de transferência de conhecimento ou a prioridade a uma maior articulação entre a inovação tecnológica e o tecido empresarial do país. Por isso, as nossas universidades, guiadas pelo enquadramento jurídico vigente nos últimos dez anos e tolhidas pelos cortes orçamentais, pouco puderam fazer para fortalecer uma mais efetiva ligação à sociedade (e ao mercado de trabalho), como previa o modelo de Bolonha e o RJIES aprovado em 2007.

Embora estando ainda longe da média dos países da UE ou mesmo da OCDE no que toca ao volume da população ativa com formação superior, são conhecidos os enormes progressos nesse campo ao longo das últimas décadas. Basta lembrar que a população portuguesa (com mais de 15 anos) com frequência do ensino superior evoluiu de 8% para 18% entre 1998 e 2017; o total de alunos a frequentar o ensino universitário passou de 50 mil em finais da década de 1970 para 362 mil em 2017; e, em proporção semelhante, aumentaram os estabelecimentos de ensino superior, o número de cursos oferecidos e ainda mais o número de portugueses com diplomas de pós-graduação, nomeadamente os doutoramentos concluídos por ano, que se situam hoje acima dos 3000 (relatório Pordata, 2018). É claro que a redução da taxa de natalidade em Portugal está já a refletir--se na retração da população universitária (prevê-se que o número de jovens com 18 anos em 2030 seja cerca de cerca de 1/3 dos de 2017), apesar de essa redução ser mitigada pela presença crescente de estudantes internacionais nas nossas universidades. Por outro lado, importa atender não apenas aos indicadores do ensino superior e da produção científica, mas sobretudo à capacidade de a sociedade e a economia portuguesas absorverem e potenciarem todo o conhecimento e qualificação gerados pelo sistema de ensino superior. Nesse capítulo, porém, parece estar a ocorrer um duplo mecanismo que tende a neutralizar o que, à partida, seriam os benefícios derivados do impacto do ensino superior na sociedade.

O primeiro refere-se à presença de diplomados no mercado de emprego. Em Portugal, a população empregada com frequência universitária passou de cerca de 15% em 2008 para mais de 25% em 2017; e considerando apenas a faixa etária dos 19-29 anos, segundo a OCDE (Education at a Glance, 2018) tínhamos, em 2017, 43% das raparigas e 26% dos rapazes a frequentar o ensino superior, o que deixa antever um potencial de crescimento ainda maior nos próximos anos. Ora, se é verdade que tais indicadores são boas notícias para a nossa economia, também sabemos que a absorção de quadros qualificados pelo tecido empresarial português é não só muito limitada, como tem decorrido no contexto de crise e num quadro de mudanças (“reforma laboral”...) tendente a favorecer a flexibilidade e a compressão salarial, nomeadamente nos níveis intermédios e mesmo nos quadros superiores. O nosso tecido empresarial está longe de saber aproveitar os recursos que tem ao seu dispor, não obstante o discurso eufórico em torno das startups e da Web Summit. É a essa luz que podem interpretar-se resultados de um relatório recente (do Observatório sobre Crises e Alternativas,do CES) que revelam uma estagnação do salário médio em Portugal nas últimas duas décadas. Só se compreende que os salários estejam hoje, a valores reais, ao nível de 1998, apesar da progressão do salário mínimo, se considerarmos que a renovação de quadros e profissões qualificadas se baseia, em larga medida, no dumping social e na cultura do burnout no mundo dos experts das grandes organizações. E, assim, a produtividade sobe, o desemprego diminui, mas os salários dos trabalhadores portugueses permanecem “congelados”. Para agravar tal cenário basta lembrar o caudal de emigrantes qualificados que as universidades e institutos superiores continuam a alimentar, fornecendo mão-de-obra qualificada que lá fora sabem rentabilizar, à custa dos recursos do Estado português.

Outro fator relaciona-se com a função de “ascensor social”, isto é, até que ponto a universidade é ou não capaz de realizar a sua missão de canal de mobilidade social ascendente, um aspeto que no caso de Portugal parece longe de cumprir-se, uma vez que, como se vê, os outputs do ensino superior estão longe de ser plenamente incrustados na economia. Um relatório recente conduzido pela OCDE (A Broken Social Elevator?, 2018) veio confirmar o que outros estudos portugueses há muito mostraram, ou seja, que a educação e a condição socioeconómica da família — em especial nos extremos da pirâmide social — são determinantes sobretudo na reprodução do estatuto e das oportunidades para as gerações seguintes, enquanto os diplomas académicos só muito escassamente cumprem o papel de ascensão. O referido estudo revelou que 58% dos pais portugueses consideraram que os seus filhos não atingirão o seu nível de status e conforto, e será necessário esperar cinco gerações para que tal possa vir a ocorrer. Em critérios específicos como a ocupação e a educação a “imobilidade” é a tendência mais forte. No primeiro caso, os filhos de trabalhadores manuais têm 55% de probabilidades de se tornarem também trabalhadores manuais, enquanto no topo um filho de gestor tem cerca de 69% de probabilidade de vir a conseguir um cargo dirigente. E no critério da “mobilidade educativa” o nosso país revela-se dos menos eficazes em promover a ascensão social num leque de 30 países da OCDE. Há uma “base pegajosa” e um “topo seletivo” que acionam poderosos condutores socioeconómicos capazes de neutralizar os fluxos “meritocráticos” que o ensino superior era suposto estimular.

Sem dúvida que o aumento da oferta e do número de jovens com formação superior foram desafios necessários e os avanços nessa matéria são inquestionáveis. Mas o papel das universidades portuguesas na definição e implementação de um programa de desenvolvimento sustentável para o país viu-se cada vez mais confinado. Condicionado por opções políticas discutíveis e pelo poder crescente do novo paradigma económico neoliberal, que, de resto, ditou as novas orientações de governos e das instituições europeias para o ensino superior. O modelo de Bolonha é apenas um exemplo. Tendo em conta o nosso enquadramento na UE, era inevitável um novo formato para o ensino superior, perante um ensino que inevitavelmente teria de crescer e, como consequência, tornar-se mais acessível — no ingresso e na conclusão — a grandes massas de estudantes.


 
 
pessoas
Elísio Estanque



 
temas
OCDE    UE    ensino superior