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16-12-2018        Jornal de Notícias

O país vive um tempo de bastantes greves, embora a medida quantitativa de pré-avisos não permita ver se temos mais do que em anos anteriores no mesmo período, pois, por exemplo, uma só greve geral tem muito mais impacto que dezenas de greves setoriais ou de empresa.

Procedendo a uma observação atenta das suas causas, constatamos que, em geral, estas greves emergiram a partir de descontentamentos legítimos. A não satisfação de reivindicações justas teve sempre a justificação de não haver dinheiro e a falta de dinheiro, real ou encenada, sobrepôs-se quase sempre aos direitos dos trabalhadores. As entidades patronais em causa, desde logo o Governo, desvalorizaram o papel dos sindicatos e desarmaram-nos no seu importante papel de mediação. Ficamos assim mais vulneráveis a aproveitamentos perversos do descontentamento, por parte das forças sociais e políticas retrógradas.

Sejamos objetivos. Diz-se que a greve dos estivadores do Porto de Setúbal, cuja origem esteve no combate a práticas ignóbeis de precariedade (o arrastar do problema fez saltar para a agenda laboral outras matérias), prejudicou a economia nacional em muitos milhões de euros. Mas, de facto, foram as entidades patronais daquele porto que, desrespeitando impunemente e durante anos os direitos dos trabalhadores e a lei, causaram tal prejuízo.

E o que se passa no setor da saúde e em particular com os enfermeiros? A profissão de enfermagem é uma das que nas últimas décadas mais se desenvolveram de forma estruturada. Isso é reconhecido no plano nacional e muito no plano internacional. Ao aumento de qualificações profissionais, académicas e de competências, bem como da relevância da profissão na prestação de cuidados, no funcionamento e na gestão das organizações da saúde, os governos não responderam com medidas de necessária valorização e dignificação.

Agora, emergiu a designada "greve cirúrgica" promovida por dois "jovens" sindicatos e um movimento inorgânico, aparentemente sob a inspiração ideológica da bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Pela sua duração e focagem nos blocos operatórios e em hospitais de grande relevo, pela forma de financiamento dos grevistas, e também pela complexidade e importância do setor, é normal que esta greve seja socialmente questionável e efetivamente questionada, suscitando justificadas interrogações.

O Governo tem neste caso uma tripla responsabilidade: i) ele é a entidade patronal que deve negociar de boa-fé, saber priorizar respostas e não arrastar os problemas com a barriga, como tem feito; ii) o Governo é responsável pela garantia do direito à saúde por parte do Estado, não podendo deixar inculcar na sociedade a ideia de que o SNS é um espaço perigoso onde se pode facilmente morrer; iii) compete-lhe impulsionar, sem enviesamentos, a discussão da Lei de Bases da Saúde que a Assembleia da República vai debater.

A saúde é o nosso bem mais precioso e o aumento da esperança de vida, associado à possibilidade de se poder viver com mais saúde, levará cada cidadão a investir tudo o que puder para assegurar essas conquistas. O poder económico e financeiro obtém fabulosos lucros com os negócios na área da saúde e sabe que uma desconfiança dos portugueses no SNS tornará o negócio bem mais chorudo.

A defesa e revitalização do SNS, pelo que ele significa para a nossa qualidade de vida e desenvolvimento, reclama que travemos todos os combates, mesmo que delicados. A sua afirmação foi possível graças a alianças forjadas contra a degradante situação anterior ao 25 de Abril, num contexto em que neoliberalismo ainda não era dominante. Hoje, essas alianças podem ser mais difíceis. E o poder dos grandes interesses económicos e de grupos privilegiados é hoje incomparavelmente maior e capaz de mobilizar, mesmo atores de elevada responsabilidade ao nível do Estado.

A conquista de melhores condições de trabalho e de vida e a afirmação de direitos humanos, como o direito à saúde, é uma luta persistente e contínua. A história ensina-nos que, neste domínio, não há, nem para os movimentos sociais nem para as forças políticas, nenhuma forma de luta que resolva os problemas de uma vez por todas e que não corra o risco de consequências perversas.


 
 
pessoas
Manuel Carvalho da Silva



 
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