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23-11-2018        Público

O mundo comemorou no início do mês o centenário do armistício que marcou o fim da IGM. Porém, na África Oriental, uma das importantes frentes desta guerra, o armistício entre as forças aliadas e os alemães foi assinado a 25 de novembro. Aqui, como noutros palcos de guerra, milhares de vidas foram marcadas pela violência deste conflito. Mas quando o mundo comemorou este centenário, o continente africano foi um dos principais ausentes desta celebração. E assim se apagaram as razões da entrada de Portugal neste conflito, e se esquecem os milhares de vidas africanas perdidas quer no continente, quer fora defendendo os interesses de potências estrangeiras e as vidas de pessoas desconhecidas.

As razões da IGM, exógenas ao continente, envolveram mais de dois milhões de africanos, simbolizando a confirmação da partilha do continente realizada trinta anos antes, na conferência de Berlim. Esta lembrança é importante, porque se grosso modo as modernas fronteiras africanas se definiram neste pós-guerra, convém não esquecer que os principais países envolvidos neste conflito – o Reino Unido, a França, a Alemanha, a Bélgica e Portugal, tomaram assento na conferência de Berlim, partilhando o continente. Assim, uma comemoração ‘global’ da IGM foi, de facto, a comemoração da história colonial europeia sobre esta guerra, uma interpretação parcial deste conflito. E as vozes que escrevem esta história são europeias. As pequenas ações realizadas pelas potências envolvidas na IGM para lembrar o papel das ex-colónias destinam-se a confirmar a narrativa dominante sobre a grandeza dos impérios coloniais. 

E talvez os mais esquecidos de todos sejam os carregadores, essa força humana fundamental à realização desta guerra nos palcos da África Oriental. Ao longo da campanha da África Oriental, talvez a mais longa e mortífera frente de guerra no continente, as tropas britânicas, alemãs e portuguesas estiveram dependentes dos carregadores (muitos dos quais eram mulheres), na proporção de quatro carregadores por um soldado. Aos carregadores cabia não só o transporte, com o seu corpo, do equipamento militar; também era sua tarefa cozinhar, limpar, e recolher informações, assegurando parte importante da logística. E, tal como os soldados envolvidos numa guerra de guerrilha, sofreram, ao longo de quatro dolorosos anos, exaustão, desnutrição e doenças.
Se dos soldados africanos pouco se fala, a não ser em ambientes académicos especializados, destes corpos de trabalho não há memória, perdidos no rasto amargo da história.

No contexto africano, o século XX inaugura, com violência inaudita, a chegada do moderno colonialismo de ocupação, um projeto político estruturado em torno a uma linha abissal, onde, de um lado existiam cidadãos que urgia proteger e, do outro, sujeitos sem nome, corpos úteis apenas para o trabalho braçal, para servir os agentes da civilização. É assim que aos africanos é negado o direito a estar representados nas negociações que levaram ao Tratado de Versalhes, que marcou o fim deste episódio de violência.

Parte dos políticos europeus que celebraram recentemente, na Europa, o fim de uma guerra mundial são líderes de países que, ainda hoje, participam em episódios de guerra. Os EUA, a França e o Reino Unido estão envolvidos diretamente em conflitos no Afeganistão, no Iraque, na Síria, na Líbia, entre outras regiões. Como vários autores têm vindo a chamar a atenção, de acordo com as normas de direito internacional estes líderes políticos são criminosos de guerra. Porém, não são penalizados porque se têm projetado como vítimas, argumentando o direito legítimo a se defenderem de ‘agressões externas’. E, de países agressores transformam-se em países vítimas, que venceram um conflito. Mas se alguma coisa aprendemos com a IGM é que a guerra é o crime supremo, que mais tarde será definido em Nuremberga como um ‘crime contra a paz’. Projetando-se como os defensores da democracia e da liberdade, os EUA e os seus aliados estão envolvidos numa aventura militar mundial, numa guerra que inaugurou o século XX e que ameaça o futuro da humanidade. Atualmente os EUA participam, no palco africano, em várias missões militares, operando em mais de vinte países. De acordo com a revista Vice, estas tropas realizaram mais de 3.500 ações e exercícios militares anuais no continente, o que corresponde a uma média diária de cerca de 10 missões. Estes dados levam-nos a perguntar qual a razão desta guerra silenciosa que os EUA (e outros aliados) estão a levar a cabo no continente.

Dar a conhecer a história da IGM pela voz dos que nelas lutaram expõem experiências subalternizadas e expressa o desejo de um reconhecimento mais amplo da contribuição do Sul global à luta contra qualquer projeto hegemónico opressor. Reclamar uma outra história feita de história em rede, denuncia a continuidade do projeto colonial, que se traduz, entre muitos outros exemplos, no silenciamento da violência experimentada pelos africanos nesta guerra. Denunciar as injustiças epistémicas sobre o conflito mundial que iniciou o seculo XX é um dever de memória, central à produção de uma outra história, a partir de outras experiências vividas nesta guerra. É parte da luta pela democracia, pela dignidade. 


 
 
pessoas
Maria Paula Meneses