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09-11-2018        Público

Numa das canções mais marcantes do panorama musical português, Sérgio Godinho narrava um extraordinário acontecimento, denunciado pelo brilhozinho nos olhos e a afirmação “é que hoje fiz um amigo e coisa mais preciosa no mundo não há”. Na verdade, durante esse encontro feliz aconteceram muitas coisas, mas feitas as contas anuncia-se o desfecho: “guardei um amigo que é coisa que vale milhões.” Já anos antes, Zeca Afonso inscrevera a amizade de forma indelével na cultura de intervenção, declarando-a maior que o pensamento.

Falemos portanto de amizade.

Realizou-se em Outubro, na Fundação Portuguesa das Comunicações, o Colóquio Internacional Queering Friendship durante o qual cerca de duzentos delegados e delegadas provenientes de países diversos refletiram acerca do papel da amizade nas sociedades contemporâneas. Investigação fundamentada nesta área aponta para formas de ressignificação dos afetos e das redes de cuidado que passam pela descentralização do amor romântico e da família biológica, dando lugar à amizade como espaço seguro e permanente. Este processo, com raízes na década de 1990, levou a que autores como Jeffrey Weeks ou Catherine Donovan falassem de famílias de escolha para designar os laços baseados em afetos que elegemos, por oposição (ou em complemento) àqueles que herdamos por via da tradição biológica ou por afinidade conjugal. A família de escolha seria então composta pelas pessoas que ao longo da vida decidimos trazer para o círculo de maior intimidade, as primeiras em quem confiamos e com quem construímos o nosso quotidiano de afeto.

Se pensarmos no contexto da Europa do Sul e no seu legado tripartido de fascismo, colonialismo e patriarcado, em simbiose com formas tentaculares de ingerência religiosa e familista, rapidamente percebemos que este não parece um lugar acolhedor para quem está do lado de fora do círculo encantado da heterossexualidade reprodutiva. Acontece que, mesmo com leis inclusivas em Espanha e Portugal, e a Constituição da República Portuguesa a garantir o princípio da igualdade em função da orientação sexual desde 2004, a discriminação permanece nas entrelinhas, nas ausências, no ainda-não dos manuais escolares que representam sempre os mesmos tipos de família, da dádiva de sangue que sempre regressa ao princípio das coisas ignorando que comportamento de risco não equivale a grupo de risco, da graçola homofóbica durante um almoço domingueiro em família. É no quotidiano que a lei é atropelada, porque continuamos a viver com a educação que herdámos. E mesmo com bons princípios de uma educação esmerada, constata-se que, em países de forte tradição judaico-cristã, a bondade e a empatia parecem esfumar-se de modo misterioso e automático assim que esbarramos na diversidade sexual ou de género. Basta observar reações generalizadas quando uma pessoa que é lida como visivelmente transgénero entra no metro ou no café do bairro ou simplesmente circula na rua. Tendemos de facto a demonstrar ampla empatia desde que mediada por um ecrã televisivo.

Acresce a este cenário os aspetos decorrentes da precaridade laboral e da vulnerabilidade familiar que deixa pessoas LGBT em situação de forte desproteção. Acresce ainda o crescimento da extrema-direita à boleia da nossa distração ou da menorização de quem reduz a violência a um boys will be boys. Em tudo isto, a amizade é muitas vezes a única corda de segurança, aquilo que possibilita imaginar uma vida que possa de facto ser vivida.

É por isso que, num contexto de retração ou ausência do Estado-Providência, podemos falar em amizade-providência para designar o papel das redes de amizade na prestação de apoio logístico, material e emocional, quando tudo o resto parece falhar. O conceito de amizade-providência foi recentemente proposto no âmbito do projeto INTIMATE: Cidadania, Cuidado e Escolha, financiado pelo Conselho Europeu de Investigação, e que recolheu 85 histórias de vida e uma centena de entrevistas a pessoas peritas nas diversas áreas abrangidas: conjugalidade, parentalidade e amizade como elementos de cidadania íntima na Europa do Sul. Destas entrevistas resultaram três principais conclusões que colocam a amizade no centro do cuidado: a amizade surge como fonte principal de apoio material e emocional; a prestação de cuidado em situações de doença ou desemprego é frequentemente assegurada por pessoas amigas, e não por familiares; 2/3 da amostra coloca na rede de cuidado imediato os/as amigos/as (61 em 85); este número é superior ao de companheiros/as (44 em 85) ou de membros da família de origem (39 em 85) identificados como fazendo parte da rede de cuidado imediato. Conclui-se que as políticas para a igualdade e cidadania devem encontrar formas de proteção da amizade a par do reconhecimento de laços relacionais como o parentesco.

Após conhecidos os resultados eleitorais no Brasil, circulou uma imagem com a legenda: ninguém solta a mão de ninguém. Lá como aqui assistimos à reinvenção de formas de cuidado e afeto que permitem sobreviver em períodos de turbulência democrática. E é nessa força, maior que o pensamento, que as palavras de Jorge de Sena ecoam hoje mais inteligíveis que nunca: "Uma pequenina luz bruxuleante /[...] / brilhando incerta mas brilhando / (...) / Tudo é incerto ou falso ou violento: brilha. / Tudo é terror vaidade orgulho teimosia: brilha. / Tudo é treva ou claridade contra a mesma treva: brilha. / […] Uma pequenina luz bruxuleante e muda / como a exactidão como a firmeza / como a justiça. / Apenas como elas. / Mas brilha. / Não na distância. Aqui / no meio de nós. / Brilha".

 


 
 
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Ana Cristina Santos



 
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