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26-09-2018        JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias

Vivemos um tempo em que as maiores anomalias acontecem sob a capa da mais rotineira normalidade e no cumprimento escrupuloso de todos os regulamentos vigentes. São afloramentos de uma cultura política e burocrática que se caracteriza pela manipulação das regras na convicção de que quem é vítima dela não tem condições para a identificar ou para reagir contra ela. Constituem a falácia da democracia: quando se desconhece a ética democrática, o excecional deixa de o ser pela simples frequência com que ocorre. Os verdadeiros desígnios que o promovem são ocultados pelo verniz burocrático. Entre os exemplos mais recentes poderíamos mencionar o processo de impedimento da Presidente Dilma Rousseff e o modo atrabiliário como foi condenado e preso o ex-Presidente Lula da Silva.

No passado dia 29 de Agosto, a comunidade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) foi surpreendida por um documento do Conselho Superior da Fundação São Paulo (Fundasp), órgão mantenedor da universidade, dirigida pelo Cardeal Odilo Pedro Scherer. Na aparência, uma normalidade impecável: a Fundação tem legitimidade para enviar o documento, estava prevista a revisão dos atuais estatutos, a comunidade tem 60 dias para responder e propor alterações, posto o que a Fundação decidirá. Acontece que as medidas propostas implicam a destruição da PUC-SP tal como a conhecemos e o período para discussão coincide (e não por coincidência) com o atual período eleitoral em que muitos dos membros da comunidade PUC-SP estão compreensivelmente preocupados com o futuro da democracia no país e certamente mais concentrados nessa luta que em qualquer outra. Entre as medidas “propostas”, acaba a eleição do reitor e dos coordenadores departamentais, o poder académico passa para a Fundação, de quem o novo reitor passará a ser um… vice-reitor, e o próprio controlo do conhecimento produzido e publicado pela editora passa igualmente para a Fundação. O eufemismo de um “documento de trabalho” para lançar uma bomba atómica emerge aqui como mais uma cruel manifestação da falácia da democracia.

Não entro nos detalhes de algumas das propostas e admito que algumas revisões sejam necessárias, desde que realizadas com a participação plena e de boa fé da comunidade da PUC-SP e com o objetivo de preservar e aprofundar a identidade de uma instituição cujo trabalho académico e intervenção social nos habituámos a respeitar e a admirar. Penso sobretudo que a pesquisa tem de ganhar um novo impulso e que a situação dos docentes e funcionários que dedicaram toda a sua vida à instituição deve ser plenamente acautelada. Quero aqui ressaltar (e, se possível, denunciar) os desígnios mais profundos a que obedece esta iniciativa da Fundação São Paulo decidida neste momento, um momento que é tudo menos inocente. O primeiro desígnio pode chamar-se capitalismo universitário. Trata-se de um movimento global de política universitária que tem vindo a ser promovido pelo Banco Mundial, pela OCDE e por outras instituições multilaterais no sentido de transformar as universidades em empresas que produzem duas mercadorias com alto potencial mercantil: conhecimento com valor de mercado (nomeadamente o que gera patentes) e diplomas que dão acesso a salários de escalão médio ou superior. Para isso, a gestão deve seguir a lógica empresarial: os professores e funcionários são colaboradores  proletarizados e os estudantes, clientes solventes; a responsabilidade social da universidade reside na sua consonância com as exigências do mercado; as áreas não rentáveis da universidade devem ser desactivadas progressivamente; a precariedade das relações trabalhistas é a mais adequada a responder às exigências sempre mutantes dos mercados; os produtos universitários devem ser sujeitos a unidades universais de medida que permitam no futuro a livre comercialização global dos cursos universitários (daí, os rankings e as publicações avaliadas segundo fatores de impacto). Neste quadro, o tradicional governo universitário democrático, além de ineficiente, constitui um obstáculo à imposição das exigências do mercado.

O desígnio do capitalismo universitário está hoje a ser promovido a nível global nas universidades privadas e nas próprias universidades públicas. Estas últimas são sujeitas à asfixia financeira com o objetivo de as forçar a gerar receitas próprias que por sua vez as obrigam a agir como se fossem empresas privadas. É um movimento poderoso mas tem encontrado resistências fortes, tanto na universidades públicas como nas universidades privadas mais antigas, criadas sem a lógica da universidade-negócio, como é o caso das universidades pontifícias. A PUC-SP é neste momento o laboratório para a aplicação plena do capitalismo universitário nas universidades que ainda não são universidades-negócio. Para tal, está também a contribuir o facto de a PUC-SP ser hoje (como já fora no tempo da ditadura) um bastião da luta contra a vertigem autoritária e anti-democrática que assola o país neste momento com a bênção do Cardeal ultra-conservador que preside à Fundação São Paulo. Daí que, para esta Fundação, já não baste ser mantenedora da PUC-SP. É necessário ser dona.

Mas a ação da Fundação obedece a um outro desígnio. Consiste na conspiração da ala conservadora da Cúria Romana contra o Papa Francisco no sentido de o forçar à resignação. A conspiração está em curso e os católicos brasileiros devem saber que o Cardeal Odilo Scherer faz parte dessa conspiração. A Igreja Católica oscilou sempre entre a burocracia ou o evangelho, entre estar do lado dos opressores ou do lado dos oprimidos, entre escandalizar pela ostentação ou pela penúria. Em geral, reservou o papado e o bispado para a burocracia, a bênção dos opressores e o escândalo da ostentação, deixando para o baixo clero e os leigos o evangelho, a defesa dos oprimidos e o escândalo da penúria. Sempre que se tentou violar esta “divisão de trabalho” houve turbulência e nem sempre os Concílios foram eficazes para a neutralizar. Com todas as suas ambiguidades e fragilidades humanas, o Papa Francisco tem vindo a dar a mão ao evangelho. As ambiguidades e fragilidades dizem sobretudo respeito ao modo como tem tratado o tema do abuso sexual de crianças e jovens por parte de padres e bispos. O Papa Francisco tem sido hesitante neste domínio, mesmo que tenha feito mais para denunciar tais situações do que todos os seus antecessores mais recentes, sobretudo aquele a quem os conservadores tudo perdoaram em face dos preciosos serviços que lhes prestou com o seu descontrolado proselitismo anti-comunista – o Papa João Paulo II. Não foi, pois, por essa fragilidade que o Papa Francisco se tornou um alvo a abater. No contexto atual, dar a mão ao evangelho não é apenas um acto com valor eclesial progressista. Numa sociedade extremamente desigual e injusta, dar a mão ao evangelho significa, não apenas salientar a elasticidade e a prudência aquiniana da teologia moral perante as situações de divórcio e de homossexualidade, mas também  enfrentar os poderes políticos conservadores que fomentam a desigualdade e a injustiça e se alimentam dela, insurgir-se contra a política migratória da Europa e dos EUA, denunciar a avareza e a miopia que agravam  de maneira irresponsável as mudanças climáticas, declarar como anti-cristã a decisão de construir muros para impedir a entrada dos condenados da terra, denunciar a imoralidade geral do capitalismo global que salva bancos mas não famílias. Por isso, o poder ultra-conservador laico e o poder ultra-conservador religioso estão hoje mais unidos do que nunca contra o Papa. Assim se explica, por exemplo, que o ex-conselheiro de Donald Trump, Steve Bannon, ao mesmo tempo que funda em Bruxelas a organização “Movement” para promover a extrema-direita na Europa, esteja a preparar o plano de estudos do colégio religioso, Instituto Dignitatis Humanae, nos arredores de Roma, para “treinar líderes e activistas políticos católicos conservadores”. Não me restam hoje dúvidas de que o Cardeal Odilo Scherer quer transformar a PUC-SP num tal campo de treino. Só o não fará se os cidadãos e as cidadãs progressistas, católicos ou não católicos, da PUC-SP e do Brasil, se lhe opuserem democraticamente. Sabendo que, com isso, estarão também a defender o magistério evangélico do sitiado Papa Francisco.  


 
 
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Boaventura de Sousa Santos



 
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