Um pouco por todo o mundo, a democracia representativa parece estar em crise. Refletindo a este propósito numa entrevista dada à CNN, Graça Machel defendeu que a crise geral de liderança no mundo decorre do facto de os mecanismos democráticos não garantirem a seleção dos melhores dirigentes. E que estes dirigentes parecem não estar preocupados em servir o ‘seu povo’.
Em muitas das análises que procuram explicar o deficit democrático no contexto africano está ausente uma caracterização das tensões que marcam o campo político. Este processo requer a consideração de abordagens abrangentes e inovadoras. Desde logo aprender a ouvir ‘desde baixo’, para incluir vozes e narrativas além da academia, sendo disso exemplo as vozes de artistas que denunciam os desequilíbrios globais e expõem a arbitrariedade das relações de poder.
Na música “Beast of No Nation” (1989), o nigeriano Fela Kuti questiona a estrutura problemática das Nações Unidas, onde “Um voto de veto é igual a 92… ou mais; onde está o sentido disso?” Uma situação semelhante acontece agora no Uganda. A detenção do cantor e membro do parlamento Bobi Wine sinaliza uma importante rutura política. O atual presidente ugandês, Museveni, chegou ao poder há mais de 30 anos, quando a maioria dos ugandeses nasceu na década de 1980; estes jovens não sentem qualquer dívida de gratidão para com Museveni, por este ter afastado do poder os anteriores ditadores. A música de Bobi Wine vocaliza o protesto, denunciando situações de discriminação e exploração pelos que estão no poder, muitas vezes visando diretamente o presidente. Numa das suas canções mais carismáticas ‘Freedom’ (2017) Bobi Wine afirma: “Yo! Vivemos num mundo semelhante ao do tráfico de escravos; Esta opressão é pior que o apartheid; A arma é o senhor, cidadão escravo! A pérola de África está a sangrar; E eu pergunto - qual foi o propósito da libertação? Quando não podemos ter uma transição pacífica? Qual é o propósito da constituição? Quando o governo desrespeita a constituição? Onde está minha liberdade de expressão? Quando me cobram pela minha expressão? […] Vejam como os nossos líderes se tornarem impostores; E os nossos mentores tornarem-se atormentadores; Os lutadores da liberdade tornam-se ditadores; Eles olham para a juventude e dizem que somos destruidores.” Como Fela, Bobi usa um radicalismo eloquente para expor a ordem injusta das coisas. Como afirmou num comício, “chegou a hora de fazermos o que precisamos fazer […]. Não é segredo que estamos a tentar unir a oposição e remover Museveni do poder […] Não se trata de um choque entre partidos políticos ou um confronto entre as partes. E também não é um choque de gerações. Trata-se da unificação dos oprimidos contra os opressores.”
Este manifesto político encontra eco entre a juventude, sobretudo nas áreas urbanas. Muitos países africanos continuam a ter uma população predominantemente rural e, por isso, muitos partidos políticos não dedicam ainda, muita atenção, a estas mensagens. Mas os países africanos estão em franca urbanização. A crescente insatisfação pública é notória, sobretudo entre a importante camada jovem, que não se revê nas envelhecidas propostas políticas. Porque as antigas formas de fazer política se revelam pouco eficazes, é urgente ouvir estes desafios e repensar as propostas políticas que respondem aos problemas vividos pelos eleitores.
Em Luanda, no início do ano, imagens de jovens jazendo sob blocos de cimento, caixotes, bidões, entre outros objetos pesados, inundaram as redes sociais. Esta performance, intitulada “Acaba de me Matar”, procura chamar a atenção para os atentados aos direitos humanos. Neste caso, as más condições de habitação vividas em vários bairros da cidade. Para protestar por melhores condições de vida em Angola, o músico Nelisbrada Catchenhé lançou um desafio: partilhar imagens encenadas nas redes sociais para fazer chegar o apelo ao presidente angolano. O manifesto político deste movimento aponta ainda várias outras razões de luta: “Acaba de me matar você que aprovou o OGE [Orçamento Geral do Estado] que vai piorar ou manter a vida dos jovens na desgraça; acaba de me matar você que na abundância só se preocupou com o desvio do erário público; […] acaba de me matar você que só está preocupado comigo quando precisas do meu voto e depois se esquece de mim […].”
Em Moçambique, as novas gerações também questionam criticamente, através da arte, a situação do país. A música de Azagaia ou das Karinganas do Rap Moz faz parte de um novo tipo de cidadania sociopolítica onde os subalternizados de Moçambique juntam a sua voz às de muitos outros jovens com quem partilham a mesma frustração: serem vítimas de injustiças ‘silenciadas’. As “verdades sem dialetos” apoiam lutas que procuram alterar as relações de poder no Sul global.
Se estes jovens estão saturados de promessas vãs, estão também, em simultâneo, emersos num outro sentido de ser global, buscando, através da utilização de ligações culturais gerar um novo sentido estético e político. A mensagem destes artistas é uma fonte importante de propostas revolucionárias que ultrapassam o continente africano, e que visibilizam lutas contra a injustiça social. Mostra-nos que os valores e opiniões eurocêntricas não explicam as lutas políticas em África e que é preciso aprender destes jovens, das suas experiências. Sobretudo assinala que o colonialismo não acabou, e que a luta contra a “mentalidade colonial” continua, como cantava em 1977 Fela Kuti.