Não é necessário ser-se adepto de futebol para perceber que na Alemanha futebol é mais do que futebol. Futebol é - à semelhança de discursos sobre a economia - um dos nichos onde o nacionalismo alemão, durante anos um tema tabu devido ao passado nazi, se refugiou e revitalizou, principalmente após a reunificação.
Respetivamente, a recusa estrondosa de Mesut Özil de jogar novamente para a seleção nacional não se deve remeter apenas para as páginas de desporto. Ela deve também ser lida como um sismógrafo da sociedade alemã. Ele revela não só o fracasso político em lidar com a realidade multicultural alemã, mas também a "revolução conservadora" que está a ocorrer no país. Não admira pois que o assunto não tenha abandonado as páginas dos jornais.
Apesar de a Alemanha ser uma sociedade diversa - 20% dos seus cidadãos têm raízes estrangeiras, nas cidades quase metade da população infantil - tal realidade nunca foi bem aceite. Após tentativas malogradas de aliciar os imigrantes a regressarem aos seus países de origem, foram dados passos tímidos no sentido de aceitar essa realidade multicultural. O mais importante remonta a 2000, quando a lei da cidadania foi alterada a fim de possibilitar a nacionalidade alemã a estrangeiros de longa permanência e a filhos de estrangeiros nados e escolarizados na Alemanha. Porém, tais iniciativas foram feitas sem coração e esforços para se redefinir a identidade alemã. Assim, uma linha divisória surgiu entre os verdadeiros "alemães de linhagem" e "os de passaporte" que se reflete em todos setores-chave da sociedade onde é raro deparar com nomes diferentes e pessoas de pele morena. Na verdade, o país continuou a encarar-se como uma sociedade homogénea e a ver o racismo como algo que só ocorre nos EUA e na África do Sul, mas não na Alemanha. Como a reflexão sobre o passado nazi incidiu no anti-semitismo, pouco se sabe sobre outras formas de discriminação na Alemanha, não obstante organizações internacionais frequentemente a denunciarem.
Apesar disso, a tentativa de fazer Özil de bode expiatório do fracasso alemão no mundial de futebol, teria sido impensável há anos atrás. Como comentou o jornalista Patrick Bahners, a campanha de difamação mediática equivale à expatriação simbólica de um jogador que nasceu e cresceu na Alemanha, possui apenas a nacionalidade alemã, deu um contributo importante para o sucesso da seleção nacional, ganhou prémios de integração e que é reconhecido internacionalmente. Como foi possível chegar a tanto? Devido à "revolução conservadora" que a fundação do partido de extrema-direita Alternative für Deutschland (AfD) em 2013 despoletou. Robustecido após a "crise dos refugiados" em 2015, o partido rapidamente se tornou na terceira força no parlamento. Tal levou a que os partidos tradicionais, especialmente os conservadores bávaros (CSU), lhe copiassem a estratégia. Assim, o ministro do interior Horst Seehofer contradisse Merkel publicamente afirmando que o Islão não faz parte da identidade alemã. Em Janeiro, o político Alexander Dobrindt apelou mesmo a uma revolução conservadora contra as políticas progressistas a geração de 68. A incitação política e mediática ao medo e a ressentimentos permitiu que uma parte da população, minoritária mas ruidosa, incluindo membros da classe média, se sinta mais à vontade para expressar abertamente opiniões racistas que conteve no passado. Para eles, a recusa de Özil, muçulmano praticante, de cantar o hino alemão, depressa se tornou inaceitável, apesar de ser uma prática comum entre os alemães antes da reunificação.
Tal "revolução conservadora" devia importar a Portugal. Em primeiro lugar, não só porque descendentes de turcos são vistos como cidadãos de segunda classe na Alemanha, mas também os portugueses e seus descendentes, que à semelhança e espanhóis, italianos, gregos e turcos foram para ali trabalhar a partir dos anos 60. Apesar de terem ajudado a reconstruir o país, continuam a ser vistos aí como os "mandriões do Sul", como os discursos usados para justificar as medidas da Troika deixaram transparecer. Em segundo lugar, porque a revolução conservadora é eurocéptica. Lembre-se que o AfD foi fundado contra o Euro por um professor de economia. Só após lutas internas, o partido apostou nos ataques ao islamismo e à imigração como estratégia populista, à semelhança dos EUA e da Grã-Bretanha. E há indicações de que esteja a ser generosamente financiado por fontes anónimas provindas da Suíça.
Quando se fala da onda de populismo na Europa, menciona-se Trump, o Brexit, a Hungria, Itália, e Áustria, mas quase nunca da Alemanha que continua a ser vista com o bastião do mundo liberal. Na verdade, o liberalismo político nunca conseguiu vingar na Alemanha, apenas o neoliberalismo económico após a reunificação. Se a sociedade civil alemã - que existe deveras - não se opõe firme e ruidosamente contra o populismo e se a estratégia da CSU não falhar nas eleições bávaras em Outubro de 2018, quiçá ter-se-á de juntar a Alemanha brevemente a esse rol.