No dia 11 de agosto, um júri norte-americano tomou a decisão histórica de condenar a multinacional Monsanto - recentemente adquirida pela Bayer - ao pagamento de uma indemnização de mais de 260 milhões de dólares a um jardineiro, Dewayne Johnson. Johnson processou a multinacional alegando que a exposição continuada ao herbicida Roundup, produzido pela Monsanto, estaria na origem do cancro que o afeta, já em fase terminal. Este é um dos mais de 4000 processos que enfrenta a Monsanto naquele país, e constitui um precedente importante para o desfecho de processos futuros.
Contribuíram para essa decisão o confronto entre peritos chamados a testemunhar, o testemunho de Dwayne Johnson e da sua esposa, e o acesso a documentos internos de circulação interna da Monsanto mostrando que a empresa ocultara informações sobre os riscos para a saúde associados ao uso do Roundup, seguindo uma estratégia adotada, durante décadas, pelas empresas tabaqueiras. A Agência Internacional de Investigação sobre o Cancro, da Organização Mundial de Saúde, definiu recentemente o glifosato, o ingrediente ativo na base do Roundup, como um provável carcinogénio, a partir de uma avalição dos estudos científicos publicados. Em maio deste ano, estudos realizados no âmbito do Programa Nacional de Toxicologia dos Estados Unidos observaram que os herbicidas baseados em glifosato apresentam maior efeito tóxico do que o próprio ingrediente ativo. Neste cenário, seria de esperar que a resposta pública aos efeitos dos agrotóxicos fosse, pelo menos, uma resposta prudente. Em Portugal, e apesar das dificuldades em assegurar o cumprimento da lei, foi recentemente, proibido o uso, em espaços públicos como jardins, de produtos baseados no glifosato. Diferente foi a posição da União Europeia, ao renovar recentemente por cinco anos a licença de utilização de agrotóxicos tendo o glifosato como ingrediente ativo, reconhecendo embora o direito dos Estados-membros de proibir o seu uso.
Mas enquanto decorria o processo nos Estados Unidos, o Congresso de Deputados do Brasil, o país do mundo que mais consome agrotóxicos, aprovava o Projeto-Lei 6.299, já conhecido como Pacote do Veneno, que promove medidas de desregulação da vigilância sanitária e ambiental sobre o uso dos agrotóxicos na agricultura e a desoneração fiscal destes, aguardando apenas a votação no Senado para a sua aprovação final. O projeto é apoiado pelo agronegócio, assim como pelo atual governo. Contra essa política foram criadas, nos últimos anos, plataformas que mobilizam movimentos, associações e organizações de agricultores, trabalhadores rurais, comunidades tradicionais, consumidores, profissionais de saúde, investigadores e cineastas que apostam na criação de um outro conhecimento e de uma ciência comprometida com a saúde, a segurança, a vida e o ambiente. Para além de uma importante documentação de casos individuais de problemas de saúde associados ao uso de agrotóxicos e à imposição de monoculturas, foram identificados e descritos os efeitos do uso destes na contaminação de pessoas - trabalhadores e consumidores -, da terra , do ar e da água. Dessa movimentação resultaram, entre outros, um dossiê sobre os agrotóxicos e uma publicação do Ministério do Desenvolvimento Agrário, de 2015, que apresentou uma análise detalhada de 750 estudos publicados em revistas científicas indexadas nas principais bases de dados, mas geralmente ignorados na decisão política, sobre o uso de transgénicos na agricultura, incluindo a sua dependência do uso de agrotóxicos. Mais recentemente, um dossiê sobre o já citado Pacote do Veneno divulgou o conjunto das notas técnicas sobre o tema produzidas por instituições e organizações científicas como a Fundação Oswaldo Cruz, a Associação Brasileira de Saúde Coletiva e diferentes organismos do Estado e organizações da sociedade ligados aos setores da saúde e do ambiente.
A imposição de um modelo de monocultura que liquida a biodiversidade e a própria viabilidade de outros modelos de produção agrícola e alimentar – tem uma outra face, a da imposição de uma monocultura do conhecimento, através da supressão ativa da diferença e do debate interno à ciência – incluindo a intimidação e ameaças a investigadores -, mas também de toda a experiência e conhecimento que não seja certificado pelos critérios dessa monocultura, em particular o que é produzido a partir dos testemunhos de pessoas e comunidades expostas aos efeitos dos agrotóxicos. Dados oficiais recentemente publicados mostram que, apesar do aumento do uso de agrotóxicos nos últimos anos, não cresceu a produção de alimentos pelo agronegócio, ao contrário do que foi ativamente propagandeado. É um dado conhecido que a maioria dos alimentos consumidos pela população brasileira provém da agricultura familiar, não do agronegócio.
O processo recente nos Estados Unidos pode ser entendido, assim, como parte de uma batalha mais ampla pela defesa da saúde humana, da biosfera e da ecosfera, e pela promoção de formas sustentáveis e livres de tóxicos de produção de alimentos, que encontram nas múltiplas experiências de agroecologia e agricultura familiar expressões que parecem modestas, mas que têm um imenso alcance enquanto manifestações emergentes ou de resistência de outras formas possíveis de viver com a terra e com a vida. Uma frente importante dessa batalha encontra-se, como mostra o caso do Brasil, no envolvimento ativo de investigadores e de instituições científicas na construção de um conhecimento comprometido com o interesse público, com a defesa da saúde e do ambiente.