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22-08-2018        Público

É comum associarmos a juventude a irreverência e rebelião. Até porque, como sabemos, a aposta no futuro, na inovação e no progresso (ou seja, na juventude) só se verificou com o advento do Estado Providência e, com ele, a expansão do sistema de ensino. A explosão demográfica do pós-guerra nos EUA, a geração do baby boom, assumiu-se como uma impressionante força propulsora de mudança, primeiro pelo novo sentido estético e mudança de mentalidades e, mais tarde, pela ação contestatária no próprio terreno sociopolítico. Um processo crescente que começou na década de 1950 e nos anos sessenta atravessou diversos continentes, culminando com o Maio de 68 francês, símbolo máximo da rutura geracional com o status quo de então.

Não foi a questão etária, mas sim a condição social que permitiu a muitos milhões de adolescentes continuar os estudos para além dos 21 anos (antes considerada a idade de acesso ao estatuto de adulto), adquirindo conhecimentos avançados, abrindo-se a novos desafios e correntes de pensamento, e tomando contacto com um contexto cultural marcado pela irreverência, onde tudo passou a ser questionável. Nos meios estudantis floresceram novas subjetividades, formas de consciência social (manifestas na música, no vestuário, na literatura, no cinema, na poesia, etc.) e movimentos sociais que abriam caminhos de esperança e utopia, propondo horizontes alternativos a um mundo belicista, moralista e consumista. As lutas sociais, protestos feministas, ambientalistas, pacifistas, que então se multiplicaram como uma vertigem internacional, trouxeram para o palco da política a "juventude" como um novo "ator coletivo" que desafiava ditaduras na América Latina ou na Europa do Sul e exigia mais verdade às democracias maduras. A juventude revelou-se através de um processo de estruturação que emergiu dessa multiplicidade de movimentos socioculturais e estilos de vida cuja marca distintiva foi a contestação aos padrões de vida dominantes.

É nesse sentido que a "juventude" é de facto uma construção social, fruto do contexto, e não apenas uma mera camada etária (daí que hoje essa condição se estenda muito para lá dos 30 anos de idade). Ou seja, quando nasceu, a juventude vestiu-se de rebelião. Mas com o passar do tempo, ao longo da segunda metade do século XX, as subjetividades e comportamentos dessa geração “rebelde” foram dando lugar a modalidades mais consentâneas com o sistema que antes se propunha combater. Mesmo os antigos líderes foram-se acomodando ou sendo cooptados pelos regimes democráticos da Europa.

Por um lado, a “sociedade de consumo” reverteu os próprios símbolos da rebelião em mercadorias. Símbolos, roupas, jeans e estilos de vida antes “irreverentes” inspiraram novas “modas”, alimentaram a indústria e a economia global. Antes ainda antes da queda do muro de Berlim já a figura icónica do Che Guevara se multiplicara estampada em t-shirts ou pins das gerações das décadas de 70 e 80, e a mesma coisa com a imagem de Lenine e toda a simbologia comunista, sobretudo após a implosão da URSS. A TV, a música pop, o vestuário e o poder crescente da cultura de massas conduziram aos poucos as novas gerações ao encontro do individualismo, do consumismo e do narcisismo, cultivando a indiferença perante a política convencional. Por outro lado, nas décadas de 1980-90, enquanto o Estado social e a economia de mercado se mostravam pujantes, crescia uma nova juventude yuppi, vestida de fato cinzento e obcecada pelo sucesso profissional e pela ascensão a um estatuto sólido de classe média. Revolução e rebelião tornaram-se então referências obsoletas para a generalidade dos jovens. A par do individualismo, o sentido de "evasão", de fuga ou alienação capturaram as gerações do último quartel do século XX, abrindo caminho a uma sociedade atomizada e corroendo as bases da democracia.

Entretanto, as oportunidades de mobilidade social começaram a estreitar-se, os títulos académicos banalizaram-se e o mercado de emprego afunilou, abrindo as portas da precarização generalizada no emprego, inclusive para os mais qualificados. Os Ganchos, Tachos e Biscates que inspiraram José Machado Pais no seu conhecido ensaio sociológico deixaram de ser considerados um momento transitório para se apresentarem como uma transição para a proletarização geral dos jovens. Hoje, a geração dos chamados millennials (os que nasceram entre os anos oitenta e noventa do século passado) começaram a desenhar novas subjetividades e a protagonizar novos desempenhos quer no plano das sociabilidades e estilos de vida quer nas trajetórias de formação académica e de inserção no mercado de trabalho.

A evasão e a busca identitária continuam a ser marcantes, mas a perceção de quão difícil é conseguir um trabalho digno e uma “carreira” profissional levou a que licenciados e doutores apostassem ainda mais no seu sentido empreendedor, o que, sobretudo com o aproximar da crise significou um reforço substancial da busca de oportunidades por via da emigração. Naturalizou-se a ideia de que ter um emprego é um desejo que requer total submissão. A naturalização da precariedade tornou a aceitação um dado inquestionável, isto é, aceder a qualquer trabalho e preservá-lo – ainda que desinteressante e mal pago – pressupõe uma entrega total e uma dedicação absoluta às chefias, mesmo quanto o abuso e a exploração são flagrantes. Ou seja, naturalizou-se a ideia de que é preciso ser-se submisso para singrar na vida.

É verdade que o novo mundo das startups, da criatividade computacional, da programação do design informático, do trabalho digital e do auto-emprego com recurso às redes cibernéticas, etc., etc., constitui uma nova e promissora realidade para os empreendedores do século XXI. Há como se sabe investimentos volumosos em incentivos e recursos públicos para este novo setor, onde muitos jovens revelam o seu talento e excecionalmente alguns chegam longe. Mas como revelam as estatísticas do desemprego de longa duração, dos contratos a termo certo, do trabalho temporário e subemprego, da compressão salarial, apenas uma ínfima minoria de sobredotados (sobretudo se bem enquadrados no sistema) consegue triunfar. São sobretudo estas camadas jovens, com cursos superiores e pós-graduações ou especializações diversas, que conseguiram empregos – no país ou na emigração – e que participam ativamente no processo em curso de recomposição socioprofissional onde os direitos laborais e a perspetiva de uma carreira segura se encontram em extinção. É esta geração que, apesar de atomizada, trabalha diariamente na construção de um novo modelo produtivo fundado na chamada industria 4.0, ajudando desse modo a alimentar a ideologia de “um maravilhoso novo mundo” em germinação, apoiado nas competências e no consentimento de uma “classe precária” em crescimento.

Os desafios destes segmentos socioprofissionais pautam-se pela mobilidade constante no tipo de ocupação e no espaço internacional. As suas sociabilidades e laços afetivos inscrevem-se, hoje, na construção de um novo cosmopolitismo transnacional (ou pan-europeu) onde poderá residir o futuro de uma Europa federal. No entanto, tais processos continuam a veicular a cultura individualista da pequena burguesia urbana do século XXI, sob influência da “nova economia” estruturada nas redes virtuais e na digitalização. Só que, no plano estrutural, a base da pirâmide amplia-se silenciosamente enquanto a classe média emagrece e os muitos ricos aumentam a sua riqueza e um ritmo incessante. Os “CEOs” do futuro raramente vêm de baixo. Dizem-nos estudos recentes (Um Elevador Social Avariado – Como Promover a Mobilidade Social, OCDE, 2018; in PÚBLICO) que será preciso esperar cinco gerações até que os jovens portugueses recuperem o estatuto dos avós da atual juventude. Perante uma regressão tão preocupante em termos de direitos e de coesão social, teremos de interrogar-nos: saberão os millennials ou os seus filhos voltar a ganhar o sentido de rebelião e de crítica sociopolítica que inspiraram as gerações do passado?


 
 
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Elísio Estanque



 
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