Da próxima vez que me perguntarem para que serve ainda o feminismo e para que servem afinal os Estudos de Género, a resposta está pronta.
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As mulheres não têm do que queixar. Antigamente é que era difícil. Hoje em dia qualquer mulher tem direitos. Passam o tempo a queixar-se, as mulheres. Brigas de namorados são como rebuçados, já dizia a minha avó. Há que saber carregar a sua cruz. Mas não, acham que a vida é como nos filmes, que é tudo rosas, que só há direitos e não há deveres. Conheci uma vez uma que até batia no marido. E depois não querem ter filhos, claro, e o país está como está. Carreiristas. Feministas, mal-amadas, só destilam veneno. Mas em vez de olhar para as questões importantes, só se fala disso, da violência sexual, é drama por tudo e por nada, até um piropo é sexismo. Já não pode dar-se um espirro, que é "caldo patriarcal"? Como se o país não tivesse problemas sérios. Tudo isto é por causa da ideologia de género. Era o que faltava impingirem isto ao meu menino lá no colégio. Aliás, toda a gente sabe, as raparigas são piores que os rapazes. Põem-se a jeito. Desmazeladas, ordinárias, não se sabem comportar. É vê-las quando chegam da noite, ou nos festivais. Lá vão colocando a garganta na guilhotina - como essa do fumar e, mesmo do beber - mas sempre clamando que são livres de o fazer. Por mim, morram à vontade: há tanta gente a mais. E lá no trabalho, que horror, são umas intriguistas. Piores que os homens, basta perguntar a qualquer mulher.
Algumas destas frases foram decalcadas dos comentários feitos a artigos anteriormente publicados, outras constam do meu caderno de campo. Estou certa de que reconhecemos este tipo de argumentação nas conversas que ouvimos em tempos recentes. E porque a universidade nem sempre se mune dos instrumentos mais eficazes contra a demagogia, entrar neste debate coloca-nos hoje enormes desafios. Por isso, importa recordar factos e deles extrair as conclusões que se exigem.
Facto 1: meio milhar de mulheres morreram em Portugal desde que, em 2004, o Observatório de Mulheres Assassinadas da UMAR começou a fazer um mapeamento dos assassinatos em Portugal. Só nos primeiros 6 meses deste ano, pelo menos 16 mulheres foram mortas, 11 das quais por homens com quem mantinham relações de intimidade: maridos, companheiros, namorados. Muitas deles haviam sinalizado a violência de que eram alvo junto de pessoas amigas e familiares. A voz destas mulheres não foi ouvida.
Facto 2: perante uma acusação de tentativa de violação de uma atleta finlandesa durante os Jogos Europeus Universitários, organizados em Coimbra em julho, o autarca Manuel Machado desvalorizou o incidente, interpretando-o à luz de um alegado ressentimento por parte da Finlândia que perdera para Portugal o concurso para organizar o evento. A mulher pediu ajuda, não a obteve, e toda a equipa acabou por ser transferida para um hotel, por se verificarem ataques sucessivos à segurança das atletas. A voz destas mulheres não foi ouvida.
E paralelamente aos factos que se acumulam emerge uma expressão distópica que visa descredibilizar décadas de trabalho consolidado na área da igualdade e da cidadania sexual – a designada ideologia de género, com forte expressão em contextos que nos são próximos por razões diversas, como o Brasil e a Itália. De que se trata?
O género é um atributo com o qual nos podemos identificar ou distanciar, mas que nos confere inteligibilidade. Constituindo uma das formas mais imediatas de descrever outra pessoa, esse atributo é o ponto de partida para uma distribuição desigual de direitos, uma assimetria que é declarada no momento do nascimento e depois confirmada pela vida fora, nas mais diversas áreas, como confirmado, por exemplo, pelo Índice Europeu de Igualdade de Género.
O género não é ideologia, é um elemento estrutural, e nessa medida é igual a outros elementos estruturais como a classe ou a origem étnica. Se o género não é ideológico, já os catalisadores da discriminação sexual decorrem de uma ideologia totalitária. A mais insidiosa ideologia de género é aquela que assassinou a vereadora Marielle Franco há 5 meses atrás, por ser uma voz incómoda e inconveniente, a voz de uma mulher lésbica negra brilhante que rejeitou o lugar da domesticidade quieta e do fado heteroreprodutor.
Ideológica é a missão de travar a produção de conhecimento nesta área, descredibilizando-a e remetendo-a para o lugar da não-ciência. Ideológica é a tentativa concertada de obstaculizar o combate à desigualdade, de introduzir escalas de gravidade na violência de género, de filtrar o que pode se dito e o que deve ser silenciado. Ideológico é o regime patriarcal que permite que vozes de mulheres batidas e de atletas assediadas continuem a não ser ouvidas no Portugal de 2018.
Facto 3: a Hungria acaba de proibir o ensino de Estudos de Género nas suas universidades. Perante esta decisão, a Associação Europeia de Sociologia emitiu esta semana um comunicado em que insta o Primeiro-Ministro Orbán a reconsiderar esta decisão, recordando que as diferenças de género são um problema estrutural e não ideológico, que produz desigualdades que importa conhecer tanto no passado como na contemporaneidade, e que um ataque aos Estudos de Género só pode ser interpretado como um ataque às Ciências Sociais no seu todo.
Da próxima vez que me perguntarem para que serve ainda o feminismo e para que servem afinal os Estudos de Género a resposta está pronta: para confirmar que vivemos em democracia, que resistimos ao totalitarismo, que permanecemos pessoas pensantes, plenas e livres. E que não há machado ideológico que corte a raiz ao pensamento.