As questões de pobreza e justiça jogam hoje um papel central no debate sobre justiça global, um debate que está no centro de reflexões sobre uma ética global, de ‘ajuda aos países mais pobres’: enfatizam-se as virtudes civilizacionais compartilhadas com povos menos afortunados, enquanto se minoram os objetivos de interesse próprio e se minimiza a violência e expropriação essenciais para a subjugação de outros povos.
Os debates sobre acordos de livre comércio são um tema quente. Em pleno liberalismo económico, o comércio livre tem sido defendido como a solução para o desenvolvimento de muitos países do Sul.
Um exemplo que porventura terá encontrado menos eco é a AGOA - a Lei de Crescimento e Oportunidades para África. Promulgada em 2000, esta lei foi renovada até 2025. Como a página online da AGOA explicita, esta legislação, que permite exportações para os EUA livres de tarifas, tem por objetivo ampliar o acesso, para vários países da África Subsaariana, ao mercado dos EUA. Desde logo que oportunidades são criadas? Como esta lei de ‘cooperação’ estabelece, os países africanos envolvidos, para beneficiarem da AGOA, devem ‘fazer progressos contínuos com vista ao estabelecimento de uma economia de mercado’, contribuindo assim para a ‘remoção de barreiras ao comércio e investimento dos EUA’. Para compreender as reações a esta lei de ‘parcerias’ privilegiadas no continente africano, há que ter em atenção que o AGOA dá continuidade às relações de dependência de África em relação ao ocidente. Todavia, não é óbvio para muitos analistas económicos o contexto em que assentam as modernas economias africanas, herdeiras do violento impacto do desenvolvimento colonial e do esclavagismo. As grandes potências económicas, quando colonizaram o continente africano, conceberam várias justificativas para legitimar e promover os seus objetivos. Estranhamente, estas justificações seguem ativas, porque a relação colonial-capitalista continua em vigor. As questões de pobreza e justiça jogam hoje um papel central no debate sobre justiça global, um debate que está no centro de reflexões sobre uma ética global, de ‘ajuda aos países mais pobres’: enfatizam-se as virtudes civilizacionais compartilhadas com povos menos afortunados, enquanto se minoram os objetivos de interesse próprio e se minimiza a violência e expropriação essenciais para a subjugação de outros povos.
Um dos casos que merece atenção é o do conflito aberto entre o Ruanda e os EUA. O Ruanda integra a Comunidade da África Oriental (CAO), cujos estados declararam, em 2015, que, a partir de 2019, iriam limitar a importação de vestuário em segunda mão. Em resposta, os EUA defenderam-se afirmando que esta decisão violava os princípios do AGOA, e as próprias condições de desenvolvimento do continente africano.
Uma guerra económica em torno de roupa em segunda mão? Será que o AGOA não beneficia os povos africanos através da livre concorrência e das trocas comerciais?
A maior parte das roupas que os consumidores ocidentais doam é vendida a granel para recicladores que as selecionam e exportam. As melhores são exportadas para a América Central e as restantes enviadas para África e Ásia. Hoje, este comércio representa um valor económico significativo, onde os EUA emergem como o maior exportador mundial em termos de volume e valor. Já os países subsaarianos são o maior destino mundial da roupa em segunda mão. Segunda a ONU, 80% dos africanos sua roupa em segunda mão.
À primeira vista, é uma situação vantajosa para todos. Esta indústria cria empregos e fornece ao mercado roupas acessíveis, ao mesmo tempo que se promove a ‘reciclagem’ de produtos. Porém, sem colocar diretamente em causa o AGOA, os países membros da CAO insistem na necessidade de investir na própria indústria têxtil e de vestuário, que querem ver crescer 25% até 2032. Por outro lado, desde 2017 que o SMART, um grupo norte-americano representando as empresas que negoceiam roupas usadas defende que a abolição deste comércio coloca em causa, nos EUA, mais de 100.000 empregos, assim como dezenas de milhares de empregos nos países da CAO.
Justifica-se a oportunidade do negócio da venda de roupa em segunda mão recicladas dos países ocidentais? Aparentemente não; o Ruanda optou por aumentar dramaticamente os impostos alfandegários sobre a roupa em segunda mão. Esta opção conheceu um ricochete imediato: os EUA acabam de abolir a isenção de direitos aduaneiros para o vestuário ruandês no contexto da AGOA.
A retaliação norte-americana pesa pouco sobre as trocas comerciais com o Ruanda. Todavia, a posição do Ruanda reflete uma preocupação com os acordos de comércio livre. Segundo dados da UNECA, os países da África Oriental, com exceção do Quénia, têm beneficiado muito pouco das oportunidades avançadas pela AGOA, muito desiguais à partida. Uma pesquisa recente revelou que o algodão produzido na CAO é exportado, fiado e tecido na Ásia, onde é normalmente transformado em vestuário. É posteriormente enviado para os EUA ou para a Europa onde é usado por 2 ou 3 anos até ser devolvido a África sob a forma de roupa em segunda mão, roupa que veste uma parte significativa da população africana.
O que significou até agora esta exportação descontrolada de roupa usada para ‘ajudar’ os africanos? Esta importação de roupas baratas e o contrabando de têxteis para África condenaram à morte as indústrias têxteis locais, o que significou a perda de milhões de empregos. Esta é a realidade também vivida em Moçambique, onde várias têxteis estão encerradas; por outro lado, a competição promovida pelas industrias têxteis asiáticas não tem ajudado.
A entrada ilimitada de vestuário e de tecidos tem também impactos sociopolíticos: ela representa a continuidade da dominação neocolonial, da dependência económica. Resistir à roupa usada, aos tecidos importados é um desafio político, onde os africanos se assumem como árbitros da inovação estilística, desafiando a hegemonia ocidental.