O governador do Banco Central da Índia escreveu um surpreendente artigo de opinião no Financial Times em que alerta para os perigos da actual política monetária da Reserva Federal para a economia internacional.
Animado pelo crescimento económico, redução do desemprego e alguns sinais de recuperação salarial e da inflação, a Reserva Federal decidiu começar a aumentar, paulatinamente, as suas taxas de juro. Embora tal aumento tenha sempre efeitos na direcção dos fluxos financeiros internacionais, já que altera os diferenciais especulativos de quem se endivida numa moeda para emprestar noutra, o que preocupa Urjit Patel é algo que não vem nos manuais de Economia. Depois de anos de "quantitative easing" - programa de compra de activos pelo banco central, normalmente títulos de dívida (pública e privada), promovendo assim liquidez ao sistema financeiro -, a Reserva Federal decidiu começar a reduzir o seu balanço, vendendo títulos ou deixando-os vencer até à maturidade. O plano implica a redução do activo no valor de um bilião ("trillion" em inglês) de dólares até final de 2019.
Ora, além deste movimento de política monetária, o Estado norte-americano prepara-se para aumentar o seu endividamento de forma significativa devido à redução de impostos recentemente aprovada, o que significa uma nova fonte de procura de dólares na economia global. Este duplo movimento arrisca-se, assim, a criar uma escassez internacional de dólares, moeda quase mundial, que afectará sobretudo as economias menos desenvolvidas, ditas emergentes, que necessitam de dólares para a quase totalidade das transacções internacionais. Num regime financeiro liberalizado como o actual, não é difícil prever crises cambiais, transformadas em crises financeiras, económicas e sociais. O recente pedido de assistência financeira da Argentina ao FMI, com a já tradicional condicionalidade austeritária atrelada, mostra o que pode ser uma nova onda de "ajustamento estrutural".
E a Zona Euro? Com o BCE ainda a aplicar o seu programa de "quantitative easing" e sem as grandes necessidades de financiamento em dólares que se aplicam às economias emergentes, tudo parece bem. Contudo, a excessiva confiança sobre o andamento da economia europeia, em que se ignoram os sobressaltos políticos como o que aconteceu agora em Itália, permitem ao BCE não só abrandar a compra de títulos de dívida, mas também anunciar o fim do programa. Depois das declarações informais, na semana passada, do economista-chefe do banco central, Peter Praet, ontem foi a vez de Mario Draghi confirmar a retirada dos estímulos não convencionais para a Zona Euro.
No momento presente, o nível de compras do BCE é já pouco superior à redenção até à maturidade dos títulos que detém. O seu balanço está estabilizado. Assim, é provável que a estratégia norte-americana seja seguida na Zona Euro. Todavia, o paralelo acaba aqui. Sabemos que, por um lado, as dívidas soberanas dos países europeus são bem diferentes umas das outras. Se a Alemanha não depende de todo do BCE para o seu refinanciamento, o mesmo não acontece com países como Portugal, Espanha ou Itália, com níveis de dívida pública insustentáveis sem o apoio do BCE. O retorno da divergência financeira na Zona Euro está ao virar da esquina. Por outro lado, com as suas rígidas regras orçamentais, um estímulo orçamental como o da economia norte-americana é aqui impossível. Poderemos ter um aumento das exportações para fora da Zona Euro, graças à desvalorização da moeda, mas será limitado aos EUA, o que vincará, mais uma vez, as diferentes estruturas produtivas entre países europeus, com alguns a beneficiar mais do que outros. E, claro, desta forma as reacções de protecção do outro lado do Atlântico só podem subir de tom.
A disfuncionalidade do euro tornar-se, mais uma vez, saliente. Quem não quiser embarcar num novo comboio de austeridade terá de enfrentar os problemas da União Monetária e suas consequências sobre o nosso país de forma sistémica, abrindo o debate a todas as opções políticas.