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24-11-2009        Público
 Com o fim da cortina de ferro e do regime soviético, abriram-se novos horizontes de esperança, que, no entanto, rapidamente se esbateram quer no Leste quer no Ocidente europeu. Velhas e novas ideologias tornaram-se ilusórias, como bem ilustra o filme Adeus Lenine (de Wolfgang Becker), ao retratar esse momento de transição, sob os escombros do muro de Berlim. Morreu o "papão comunista";, e, com ele, não só a ortodoxia leninista-estalinista ficou órfã, mas também as ideologias de direita perderam a sua referência "contra-identitária";, enquanto a social-democracia se esvaziou lentamente.

Porém, 20 anos depois, a nossa ideia do campo soviético continua muito distorcida. Já visitei várias vezes países do antigo bloco do Leste e dei-me conta que no quotidiano da ex-URSS a vida do cidadão comum era, de facto, pautada pelo equilíbrio, sentido de segurança e pela entreajuda. A revolução de Outubro e a colectivização tiveram efeitos muito variados. E, ao contrário da imagem estereotipada do ocidente, não existia apenas repressão e controle totalitário. Deu-se uma desmaterialização das ambições que, ao longo de sucessivas gerações, criou sólidas formas de convivialidade, de solidariedade e de humanismo. O individualismo cedeu o passo ao colectivismo, e a ambição economicista cedeu o passo ao enriquecimento intelectual e à formação cultural para todos. As crianças brincavam nas ruas e eram felizes. Os sistemas de educação e de saúde funcionavam. Quem quisesse podia estudar até concluir a universidade. E, terminados os estudos, o emprego estava garantido. Essas atmosferas sociais amigáveis – pelo menos na base da sociedade, na escola, no bairro ou na vizinhança – perderam-se, e o poder está agora nas mãos das máfias. É por isso que muitos lamentam hoje a queda do muro e do velho regime.

Por outro lado, como se sabe, a URSS era um sistema opressivo, sem liberdades políticas e onde a perseguição, a repressão, o terror e a violência – a mando da KGB ou suas congéneres – constituíam uma prática comum de que verdadeiramente ninguém estava a salvo. Ninguém quer, evidentemente, o regresso ao passado estalinista, aos tempos do medo, do gulag e dos "desaparecimentos"; silenciosos.

Como afirmaram Marx e Engels (O Manifesto do Partido Comunista, 1848) "tudo o que é sólido se dissolve no ar";, e foi isso que aconteceu à velha utopia do socialismo do Leste. Mas a erosão não ocorreu apenas a Leste. Também a "utopia capitalista";, sonhada por muitos (dos que saltaram o muro) como o mundo da opulência, da liberdade e das oportunidades, se revelou, afinal, uma Europa (ocidental) já em crise, onde as liberdades políticas se conjugam com desigualdades, miséria, pobreza e desemprego. As próprias classes médias – e o seu consumismo – que haviam feito a inveja dos filhos do operariado da ex-RDA já há muito davam sinais de fraqueza e proletarização.

Vinte anos depois, tanto no Leste como no Oeste muitos outros muros se perpetuam. Dentro da própria União Europeia abundam os exemplos: os novos despotismos, as novas segregações, precariedades, tráficos e exclusões de todos os tipos. Como retrata o recente filme Paraíso a Ocidente (Éden à l’Ouest, de Costa Gravas), a Europa transporta no seu seio, enquanto "paraíso";, uma sucessão de infernos onde o mais inocente dos crentes está sujeito a cair. E a muitos outros, vindos do Leste, restou-lhes o purgatório. Frustradas as esperanças, regressaram às suas origens, aí enfrentando a vida no mundo "pós-socialista";.

 
 
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Elísio Estanque