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01-06-2018        Público

A recente celebração da transferência da embaixada norte-americana para Jerusalém – considerada pelo governo israelita como o reconhecimento de facto e de direito de Jerusalém como capital de Israel -  e a repressão sangrenta das manifestações de palestinianas e palestinianos ocorridas na Faixa de Gaza aparecem como uma reafirmação, 70 anos depois, da dupla face do processo que, em 1948, levou à criação do estado de Israel e à expulsão de 800000 palestinianos do território onde viviam, e a que estes se referem como Nakba ou “catástrofe”.  

Estas são duas faces, inseparáveis, de um mesmo processo histórico. Alguns historiadores israelitas, através de minuciosa investigação realizada a partir dos próprios arquivos do estado, não hesitam em descrever o processo de expulsão da população palestiniana como uma limpeza étnica, mesmo quando diferem em aspetos da sua interpretação e na sua posição em relação às políticas do estado de Israel. Não será de espantar, por isso, que quando Israel celebra o seu momento fundador os palestinianos se mobilizem para lembrar o lado sombrio desse processo e o esquecimento ou marginalização a que ele tem sido votado por boa parte da comunidade internacional.

A supressão desta outra história resultou na recusa de reconhecer a existência dos palestinianos e palestinianas, tanto enquanto comunidade política com direito à autodeterminação e a um governo próprio, como enquanto pessoas com um nome e uma experiência de vida, que trabalham, sofrem e têm aspirações a um futuro livre e digno. Remetidos para uma zona de não-ser, como lhe chamou Frantz Fanon referindo-se às populações colonizadas e racializadas, os palestinianos são tratados hoje pelas forças no poder no estado de Israel como um Outro irredutível a qualquer forma de existência que não implique a sua segregação, espacial ou legal, as limitações à sua mobilidade, a privação regular de acesso a água e eletricidade, as incursões ou ações militares de punição coletiva, ou o tratamento diferenciado ou de exceção pelo sistema judicial, com detenções longas sem julgamento, ou julgamentos em tribunais militares. A condição de exclusão abissal, para usar o termo de Boaventura de Sousa Santos, encontra aqui uma manifestação exemplar, transformando a existência das palestinianas e palestinianos num estado de exceção permanente, sempre justificado pela ameaça presente ou futura, atual ou potencial, que faz de cada uma e de cada um um agente voluntário, involuntário ou manipulado por forças hostis de um terrorismo que aparece de toda a parte, manifesto nos atos de resistência, violentos ou não, e latente nos interstícios da aparente resignação a uma vida dependente da vontade e do arbítrio de um poder ocupante.

Mas a história desse duplo processo tem sido feita também a partir da experiência dos palestinianos e palestinianas de várias gerações, marcadas pela experiência da Nakba e das suas consequências, e do seu trabalho com intelectuais, historiadores, cientistas sociais, poetas, escritores, artistas, músicos e cineastas. Um livro originalmente publicado nos Estados Unidos, organizado por Ahmad Saadi e Lila Abu-Lughod, um sociólogo e uma antropóloga, filhos de um grande intelectual palestiniano, Ibrahim Abu-Lughod, dá conta das diferentes práticas de memória que colocam a Nakba no centro da constituição de uma memória coletiva e histórica do povo palestiniano. A obra foi recentemente traduzida para língua espanhola, com o título Nakba: Palestina, 1948, y los reclamos de la memória, numa coleção pelo pelo Conselho Latino-Americana de Ciências Sociais (CLACSO) e dirigida por Karina Bidaseca, investigadora da Universidade de Buenos Aires. Esta edição permite ampliar o acesso a uma contribuição incontornável para a construção da memória histórica e coletiva do povo palestiniano. A partir dos trabalhos de historiadores, de estudos antropológicos e sociológicos, dos testemunhos de mulheres e homens de várias gerações, de memórias resgatadas através de histórias de vida e outras formas de expressão popular, das reconstituições dos espaços das aldeias desocupadas e destruídas, da poesia oral, da música e da literatura, mobilizando recursos expressivos e narrativos diversos, têm vindo a  ser elaboradas outras histórias que resgatam o que foi o acontecimento do lado dos que o sofreram e o viveram como a “catástrofe” que os separou violentamente do lugar onde viviam e que reconheciam como aquele a que pertenciam. Nos diferentes momentos dessa história, foi-se forjando uma memória coletiva desse outro lado que não pode ser ignorada.

O esforço em curso de reconstrução de uma história da Palestina pelos palestinianos – os que vivem em Israel, nos territórios ocupados, nos campos de refugiados espalhados por vários países ou no exílio -, uma história que estabeleça definitivamente a inseparabilidade da criação do estado de Israel e da Nakba, será seguramente uma contribuição importante para desfazer os estereótipos que continuam a desumanizar as várias gerações de mulheres e homens da Palestina, e uma importante frente de luta pelo seu reconhecimento como uma comunidade política, pela afirmação do direito à vida, da dignidade, da justiça e de uma paz duradoura.    

Nota: Uma palavra de homenagem a António Arnaut, a quem devemos o projeto do Serviço Nacional de Saúde, e que nos deixa em legado uma contribuição preciosa para uma reforma da Lei de Bases da Saúde que resgate as promessas da proposta original do Serviço Nacional de Saúde como pilar da democracia e dos direitos de cidadania.    


 
 
pessoas
João Arriscado Nunes



 
temas
israel    palestina    médio oriente    democracia