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18-05-2018        Público

A propósito de uma pertinente campanha pela despenalização da morte assistida, muito se tem discutido acerca de autonomia e dos limites do direito à escolha. A 29 de maio debatem-se quatro projetos de lei acerca do tema. No essencial, trata-se de reconhecer, ou rejeitar, a cada pessoa a capacidade de decisão acerca da sua própria vida, criando condições para que essa decisão, livre e informada, se concretize num ambiente seguro.

Bem se vê que não estamos muito longe do que sempre esteve em causa quando falamos de autodeterminação – o respeito pelo direito inalienável de cada indivíduo tomar decisões do foro pessoal, íntimo e familiar livre de constrangimento, discriminação ou outras formas de violência.

Desde o direito ao aborto ao reconhecimento do trabalho sexual enquanto trabalho, a discussão sobre autodeterminação tem sido feita sobretudo no marco da cidadania sexual e reprodutiva e das políticas de igualdade de género. Exemplos recentes reportam-se à aprovação da gestação de substituição numa versão muito parcial, e da nova lei de identidade de género, cujo veto presidencial conhecido a semana passada está já a mobilizar várias formas de resposta e resolução por via parlamentar.

Não deixa de ser interessante constatar que, em plena era TED Talk, paralelamente a um discurso que promove a iniciativa, confia na meritocracia e encoraja o espírito empreendedor, alguns setores insistam em travar a decisão individual apenas quando se trata de matéria no plano da intimidade, como se a vida pessoal precisasse sempre de ser sancionada por outrem. Será talvez um legado da mais longa ditadura da Europa ocidental, justificação a que sempre regressamos para perceber o que nos escapa – há que policiar, conter, respeitar hierarquias de peritagem, confirmar novamente com a autoridade especialista, urdir, enfim, toda uma rede fininha de subtis impasses burocráticos (ou de outra ordem) para que ninguém corra o risco de decidir por conta própria aquilo que lhe diz respeito.

A este propósito surgem frequentemente questões sobre o sentido da vida, do que deve ser feito, daquilo que nos confere, afinal, humanidade. O que nos torna humanos é discursivamente construído por oposição ao que faria de nós não-humanos, porventura monstros. Atente-se no facto de, no mundo natural, onde prolifera todo o tipo de criatura extraordinária, diversa e mutante, os humanos serem manifestamente uma minoria insignificante. Ainda assim, o discurso prescritivo sobre o que faz de nós humanos insiste em ancorar-se naquilo que é visto como natural. Paradoxalmente, mais do que a capacidade de fazer escolhas racionais e informadas, parece ser a natureza que nos confere a humanidade que, de outra forma, perderíamos. De acordo com esta linha de biologismo essencialista, não é natural ser-se trans ou intersexo, logo patologize-se; não é natural engravidar por altruísmo ou utilizar o corpo como força de trabalho (a menos que seja para qualquer outro tipo de trabalho que não sexual ou reprodutivo), logo rejeite-se; não é natural desejar morrer, logo suprima-se. Convoquem-se todos os guardiães de humanidade, para que nos protejam dos monstros que não somos. Mas que monstros são estes que tanto tememos em 2018?

Os monstros são historicamente entidades que não encaixam no guião linear, cujos corpos, práticas ou experiências constituem um lembrete de inadequação, de fluidez, de ambiguidade. Temos medo dos monstros porque convocam uma desobediente indisciplina que aprendemos a interpretar como necessariamente perigosa e nefanda, contra-natura, mesmo sabendo que são eles, os monstros, que nos abrem as portas da imaginação e do arrojo. Precisamos dos monstros para nos lembrar que não somos apenas mais um tijolo no muro, parafraseando o hino dos Pink Floyd.

A argentina Susy Shock ficou conhecida enquanto autora do texto Reivindico o meu direito a ser um monstro. Nesse manifesto de autodeterminação, a poeta declara-se “nem homem, nem mulher, nem XXY, nem H20, monstro do meu desejo, carne de cada uma das minhas pinceladas, […], borboleta alheia à modernidade, à pós-modernidade, à normalidade, oblíqua, silvestre, estrábica, artesanal”, convocando o seu direito à monstruosidade na mesma passagem em que concede que “outros sejam o normal”.

Este grito de libertação congrega muito do que está em causa quando se fala em direito à escolha. Não se trata de impor um modelo único, tomado por inerentemente bom, que silencia tudo quanto dele discorde. Trata-se, pelo contrário, de proteger a possibilidade de que haja mais do que uma forma de escolher viver – e morrer. A humanidade não é conferida pelo monopólio da escolha única; pelo contrário, se há marca que nos torna humanos é justamente o livre arbítrio num contexto de escolha múltipla. E o livre arbítrio mais não é do que o direito a uma decisão autodeterminada, livre e informada, mesmo quando os poderes fácticos, pouco dados à belíssima mutação dos corpos, das práticas e das experiências, nos acenam com o monopólio de uma humanidade castradora e nos aconselham a enjeitar uma monstruosidade afinal emancipatória.

Nota da autora: O título inspira-se, por um lado, na Exposição de Ilustração Contra-Natura: The God, The Bad and The Monster, inaugurada hoje no Museu da Água em Coimbra e patente até 24 de junho, e, por outro, numa frase de Adrienne Rich publicada em 1963 em Snapshots of a Daughter-in-Law.


 
 
pessoas
Ana Cristina Santos



 
temas
eutanásia    saúde    dignidade humana