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08-05-2018        Público

Invocar o Maio de 68 no seu cinquentenário justifica uma breve reflexão sobre a relação entre a política e a cultura, já que esse foi um dos raros momentos em que a luta socioeconómica promovida pelo campo sindical irrompeu lado a lado com o sentido estético, criativo e libertário do campo cultural, ameaçando a ordem estabelecida.

O novo modelo de regulação que vigorou durante as “três décadas douradas” do pós-guerra tinha realizado um conjunto de promessas e politicas sociais que pareciam garantir a harmonia e a coesão social. O enquadramento político internacional da época é bem conhecido: contexto de Guerra Fria; conflito sino-soviético; guerra do Vietname; tensão e corrida ao armamento entre a NATO e o Pacto de Varsóvia; crescimento das classes médias; e, na Europa, a consolidação do Estado providência e da “sociedade da abundância”. Paralelamente, a expansão de novas correntes culturais, musicais, novos modos de vida e opções estéticas entre a juventude estudantil vinha desde a década anterior fazendo crescer o mal-estar e a aversão à moralidade conservadora no seio da família convencional e ao formalismo burocrático das instituições políticas. No exato momento em que a sociedade de consumo e “do espetáculo” (que Guy Debord tão bem caracterizou) ganhava consistência, multiplicaram-se no seio da juventude estudantil novos modos de vida e as coletividades alternativas, animadas por sentimentos pacifistas, rejeitavam o autoritarismo, o conservadorismo e a guerra. A música, a cultura, a poesia, o cinema, o teatro e a literatura tornaram-se catalisadores de uma irreverência e de uma mentalidade subversiva que se estendeu a todos os cantos do mundo.

Com a população estudantil em crescimento, esse caldo de cultura trouxe ao de cima novas contradições sociais reveladoras dos limites da democracia representativa com destaque para as vanguardas culturais emergentes, entediadas com as rotinas do “statu quo” dominante. A Guerra Fria, a corrida ao armamento e a guerra do Vietname abriram o caminho das rebeliões na escala internacional, a começar pelos EUA. A juventude dos sixties e o Maio de 68 deram corpo a um novo radicalismo de classe média, mas as revoltas estudantis de Paris juntaram-se às lutas sindicais protagonizando uma viragem nas lógicas de ação coletiva, da “luta de classes” para as “lutas identitárias”, das reivindicações materialistas para as pós-materialistas, da esfera produtiva para a do consumo, da fábrica para a universidade. Mais do que uma “aliança estratégica” foi uma combinação explosiva que fez tremer a França.

Paradoxalmente, tanto o igualitarismo comunitário como a afirmação do indivíduo e do direito à diferença foram duas faces de um mesmo processo que em 1968 confluiu em Nanterre e na Sorbonne. A denúncia política assumiu-se nas mais diversas cores ideológicas – e muitas vezes fundada em opções equivocadas, como por exemplo a apologia da revolução cultural chinesa – mas foi sobretudo através da chamada “crítica estética” (L. Boltanski & E. Chiapello, O Novo Espírito do Capitalismo), isto é, foi na força simbólica e mediatizada dos protestos e nos modos de vida alternativos ao mainstream que os movimentos sociais da década de 1960 deixaram a sua marca. O dramatismo das ações violentas e o radicalismo das palavras de ordem conviviam com o lado festivo e espetacular. Paralelamente às orientações utópicas e anti sistémicas, acionaram-se modalidades de intervenção pragmática, exigindo resultados imediatos. Em suma, os movimentos dos anos sessenta inventaram novas fórmulas de ativismo, que a partir daí vão e vêm, aparecem, desaparecem e reaparecem após longos períodos submersos nas rotinas do quotidiano, mas que, tanto pelas ações aparatosas como pela corrosão silenciosa da “normalidade”, se vão insinuando e abrindo brechas nos interstícios do sistema, corroendo a ordem dominante.

Mas o próprio movimento de maio em Paris tem antecedentes mais próximos. Nele se condensaram múltiplas pulsões sociais e descontentamentos cujas origens e protagonistas são muito diversos, não apenas oriundos da juventude universitária mas também de segmentos significativos do operariado e de outros setores socioprofissionais. Aliás, na França, as primeiras barricadas surgiram em janeiro desse ano na sequência de uma greve operária na fábrica Saviem (camiões Renault), quando os seus 1500 trabalhadores reivindicavam aumentos salariais de 6%, um fundo para partilha de dividendos e o respeito pela representação sindical e diálogo social no seio da empresa. A repressão policial do governo gaulista foi tal que rapidamente se espalhou a faúlha da solidariedade pelas empresas da região de Blainville sur Orne (município de Calvadosna Normandia). A onda de greves foi animada sobretudo por jovens operários mas nela se envolveram também agricultores, professores e estudantes. Às massivas manifestações de 13 de maio – contestando os dez anos de governo de Charles De Gaulle – seguiu-se uma greve geral que paralisou o país durante cerca de um mês, enquanto as principais universidades estavam ocupadas pelos estudantes. Em 14 de maio os operários da Sud-Aviation, em Bouguenais (Nantes), ocuparam a fábrica em revolta contra a redução de horários e de salários, após tentativas falhadas de acordo entre os sindicatos. Perante uma sociedade bloqueada e crispada, a união solidária de diferentes setores fundava-se no anti gaullismo como sentimento comum, mas o campo sindical e comunista olhava para o movimento com desconfiança e ceticismo.

Como seria de esperar, um movimento tão espontâneo, contingente e criativo – e sobretudo tendo atingido um impacto público tão impressionante – incutiu perplexidade, desconfiança e mesmo hostilização aberta dos setores mais ortodoxos. Com ele nasceram novas causas, outras ganharam mais força: a ecologia política foi uma delas, na linha de um crescente sentimento anti-tecnocrático que assumiu expressão poética nos confrontos de maio no Quartier Latin, sob o slogan “debaixo das pedras da calçada, a praia”; onde cada pedra arrancada imprimia mais força ao movimento “os amigos da terra” que então crescia na Europa; as lutas pela paz evoluíram lado a lado com o ethos libertário, ecologista e feminista. Mas, embora o lema “make love not war” fosse um traço que se espelhou pelo movimento hippie, o feminismo – se olhado a partir de hoje – era pouco mais que incipiente e a participação da mulher cingia-se ainda a tarefas subalternas (mesmo no campo do ativismo).

No Maio de 68 o pragmatismo fundiu-se com o idealismo utópico. Frases emblemáticas como “sejam realistas, exijam o impossível!”“a imaginação ao poder” ou “o futuro é agora!” são marcas indeléveis dessa geração. Mas também a recusa da ortodoxia marxista-leninista foi bem visível, desde logo, no título de um livro acabado de publicar pelo mais carismático líder do Maio de 68 (Daniel Cohn-Bendit, em coautoria) O Esquerdismo, remédio para a doença senil do comunismo (Paris, Seuil, 1968), uma resposta ao célebre texto de Lenine. Na verdade, desde as ações bélicas da URSS na Hungria (1956), passando pela invasão da Checoslováquia (1968), que a juventude estudantil europeia ganhara consciência de que o estalinismo e o imperialismo soviético não tinham desaparecido com a morte de Estaline. E as numerosas lutas estudantis desse ano e do período subsequente, que ocorreram em diversos países e continentes (EUA, Alemanha, Itália, Brasil, Argentina, México, etc.), mostraram bem o caráter global das novas formas de rebelião juvenil. O Maio de 68 foi o momento culminante de uma cadeia de acontecimentos interligados – entre as décadas de cinquenta, sessenta e setenta – que abriu caminho a uma sociedade civil mais ativa e politizada.


 
 
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Elísio Estanque