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09-05-2018        Público

Resultado da imensa diversidade de experiências sociopolíticas, os efeitos miméticos de 1968 tornaram-se muito mais efetivos a posteriori do que as intenções dos seus líderes e protagonistas imaginavam. Mesmo os regimes autoritários – sobretudo na América Latina, mas até em Portugal, Espanha e Grécia – não deixaram de sentir a força contagiante dessa onda de rebeliões que abriu as portas a novas conceções acerca da esfera política e da democracia. Construídos sob uma lógica de globalização solidária e emancipatória, essas ações mostraram ao mundo o potencial político de novas linguagens, mobilizações e performances em que os próprios mass media, como a televisão, se revelaram pela primeira vez como instrumentos centrais da ação política. Se hoje continuamos a debater o Maio de 68, isso deve-se, por um lado, à dificuldade de decifrar toda a trama de relações e formas de intervenção que emergiram nesse contexto e, por outro, ao facto de muitas das inquietações e reportórios que esse movimento introduziu na esfera pública não terem perdido atualidade, apesar das cinco décadas passadas.

Talvez o mais importante do legado do Maio de 68 se prenda com a multiplicidade de formas que assumiu, com a espontaneidade, a riqueza imaginativa, a imprevisibilidade e o seu conteúdo subversivo, em todos os sentidos da palavra. Embora o campo estudantil estivesse no centro do movimento de Paris, foi pela diversidade das causas e pela abrangência da sua composição social que adquiriu o relevo que ainda hoje preserva. Um dos intervenientes nos acontecimentos de 68 realçou em entrevista recente ao jornal Le Monde a importância do campo grevista mas também do fator cultural: “Dum só golpe nós pusemos em causa as relações entre homens e mulheres, entre pais e filhos, médicos e doentes, o juiz e o réu, o louco e a instituição psiquiátrica, questionamentos que atravessaram tanto as famílias operárias como as da classe média ou da burguesia (...). Ao lado do confronto entre classes, patrões e trabalhadores, brotou nesse momento uma lágrima íntima que ainda queima na nossa sociedade” (Harvé Hamon, Revista Le Monde, Hors-Série – abril-junho, 2018).

Fará sentido pensar que o Maio de 68 teve repercussões e influência em fenómenos como a Crise Académica de 1969 ou o 25 de Abril de 1974? Em artigo anterior realcei alguns dos fatores que precederam ou contribuíram para a explosão social que paralisou a França há exatamente meio século. Não se pode, evidentemente, estabelecer relações causais ou determinismos estreitos em torno de fenómenos tão complexos. Sabemos também que Portugal sofreu até 1974 uma ditadura de características fascistas e que a Universidade portuguesa, apesar do seu crescimento desde a década anterior, estava longe da abertura e massificação já em marcha nos países avançados do Ocidente. Por outro lado, o país debatia-se desde 1961 com uma Guerra Colonial em África, que martirizou muitos dos nossos jovens. Mas, ao mesmo tempo, as modas, os hábitos de consumo, os gostos musicais e a irreverência estética da contracultura juvenil foram movimentos socioculturais de raiz ocidental que vinham também contagiando a juventude portuguesa dos meios urbanos.

Antes e depois de 1968, o movimento estudantil português fez sentir o seu protesto e chegou a ameaçar a ordem vigente, quer em Lisboa (1962), quer em Coimbra (1969). Escasseiam ainda estudos históricos sobre o tema mas, apesar da censura do regime, há evidência empírica reveladora da penetração clandestina de informação e literatura que atravessou fronteiras e ajudou a instigar os principais núcleos da resistência contra o Estado Novo. Não obstante tratar-se de realidades muito distintas, em diversos momentos da Crise Académica de 69 notou-se a mesma vontade de mudar o mundo, a mesma criatividade do corpo estudantil, o espírito comunitário vivido nas Repúblicas de estudantes, as iniciativas de solidariedade vivida nas ruas de Coimbra, de que são exemplo ações – ao mesmo tempo festivas e de luta – como a “operação flor” ou a “operação balão”, para além do fator repressivo e da violência policial, tal como em Paris no ano anterior.

Contaminações sem dúvida muito mitigadas e diluídas na onda de uma contestação mais diretamente apontada a outras causas: a luta pela liberdade de associação, por uma universidade livre e democrática, além da preocupação latente com a Guerra Colonial. Outro aspeto comum é que, à semelhança do Maio de 68, a contestação estudantil contra o regime – nomeadamente a luta estudantil de 69 em Coimbra – saiu derrotada no imediato e os seus ativistas foram perseguidos, presos e muitos deles enviados para o exército e para a guerra. Ou seja, o vírus democrático gerado por esses protestos terá contagiado alguns dos setores que, cinco anos depois, organizaram a ação militar que derrubou o regime de Salazar-Caetano.

As dinâmicas de mudança social desdobram-se sempre em dimensões paralelas e sob ritmos dessincronizados no correr do tempo. E é nesse sentido que muitos ativistas viram no PREC português de 1974-75 uma nova etapa do espírito do Maio de 68. Na escala europeia e internacional, a Revolução do 25 de Abril fez convergir para Portugal não apenas muitos dos que, por essa Europa fora, tinham lutado pelo socialismo ou apenas para imprimir maior intensidade à democracia, e que se sentiram indignados com a derrota política do movimento de 68. A estes há que somar também aqueles que, fustigados pelas ditaduras militares da América Latina, buscaram em Lisboa o tal “cheirinho de alecrim” para inspirar os movimentos de resistência que se erguiam corajosamente contra as ditaduras e ameaças militares naquele continente (como a de Pinochet no Chile, o governo militar de Ernesto Geisel no Brasil ou a ditadura de Videla na Argentina, que se consumou em 1976).

Mesmo rejeitando quaisquer determinismos, os movimentos e rebeliões sociais que então emergiram em diferentes latitudes revelaram a força das contaminações e mimetismos recíprocos. Cerca de duas décadas antes da chamada “era da globalização”, a ideia de “pensar globalmente, agir localmente” pareceu antecipar uma tendência já em curso mas onde os valores solidaristas, igualitários e pacifistas constituíam a antítese da globalização neoliberal que acabou por se impor alguns anos depois. É certo que a Revolução portuguesa não teve como principal protagonista o movimento estudantil, enquanto tal, nas lutas sociais do PREC. Mas a espontaneidade e generosidade de muitos movimentos populares, onde espontaneamente participaram estudantes e jovens de diversas correntes políticas, o radicalismo das ações de ocupação, a dinâmica de base animada por assembleias de escola e de faculdade, a vontade genuína de mudar o mundo foram alguns dos lemas comuns a esse ciclo de intenso ativismo, onde é possível apontar conexões e contaminações reciprocas entre mobilizações operárias e dinâmicas de base cultural, entre movimentos sindicais e lutas ambientalistas, feministas, etc.

Se no mundo “globalizado” de hoje se tornou claro que “isto anda tudo ligado”, já nos anos oitenta Sérgio Godinho o afirmava numa das suas conhecidas canções, talvez expressando dessa forma a sua própria trajetória pessoal entre Paris e Lisboa, entre a vivência democrática no exílio e a celebração de uma viragem histórica libertadora, em 1974. Não é por nostalgia que acontecimentos extraordinários como o Maio de 68 ou o 25 de Abril devem ser celebrados. É sim para lembrar aos não resignados com o declinar paulatino da cultura política e da democracia que precisamos, mais do que nunca, de estudar o potencial de atualidade de tais experiências, não para voltar a fazer tudo igual mas para que se perceba – em particular a juventude de hoje, que se debate com a precariedade e o futuro bloqueado – que tudo pode ser diferente.


 
 
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Elísio Estanque



 
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