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27-04-2018        Público

“A criança gozará de proteção especial e deverão ser-lhe dadas oportunidades e facilidades através da lei e outros meios para o seu desenvolvimento psíquico, mental, espiritual e social” – assim estabelece a Declaração dos Direitos da Criança. Este documento, adotado pela Organização das Nações Unidas em 1959, afirma ainda que, no que se reporta a alterações de ordem jurídica, “o superior interesse da criança constituirá a preocupação fundamental”.

Enquanto corpo social, partilhamos a responsabilidade de combater situações de vulnerabilidade a que possam estar sujeitas crianças cujo superior interesse deve ser acautelado. Há duas semanas atrás, a 13 de abril, a Assembleia da República aprovou por maioria uma lei que respeita a autodeterminação de género a partir dos 16 anos e que dispensa intervenções cirúrgicas em pessoas intersexo menores de idade, salvaguardando situações de risco de saúde ou vida. Ao respeitar a autodeterminação, Portugal colocou-se ao lado de países como a Bélgica, a Dinamarca, a Irlanda, Malta ou a Noruega, cumprindo-se finalmente abril para muitas pessoas trans, intersexo e suas famílias para quem a possibilidade de uma vida digna e livre tardou em chegar. Esta alteração legislativa representou o culminar de um longo processo de auscultação e de maturação social que envolveu a academia. O Memorando de Reflexão sobre Políticas Trans foi publicado, identificando um conjunto de necessidades e recomendações sentidas por pessoas trans e não binárias, em áreas como infância, prestação de cuidados, migração, asilo, precariedade e violência. Para além de pessoas peritas, ativistas e indivíduos trans e intersexo, foram ouvidas mães, pais e avós das crianças que, até agora, pareciam esquecidas pelo Estado. Foram estas famílias que redigiram um documento apelando à ratificação da lei por parte do Presidente da República de modo a que o bem-estar destas crianças esteja protegido. Por incrível que pareça, no Portugal de 2018 há quem discorde.

Boa parte da controvérsia decorre do desconhecimento acerca daquilo que está em causa, insistindo em equiparar a identidade de género à possibilidade de comprar tabaco ou fazer uma tatuagem, e reproduzindo argumentos que confundem sexo com género e alteração de nome com procedimentos médicos alegadamente irreversíveis. A outra parte da discórdia resulta de preconceitos vários, todos condenáveis à luz do respeito pela dignidade humana. Os elementos principais desta disputa consistem na alegada defesa da família e no ataque ao que pejorativamente se designa por ideologia de género.

É interessante notar que, quando se levanta a bandeira da defesa da família, se convoca um imaginário que não corresponde à realidade estatisticamente dominante nas sociedades contemporâneas – a chamada “família nuclear”, composta por um casal heterossexual, casado, reprodutor e ao qual compete cumprir cada um dos deveres conjugais, nomeadamente fidelidade e coabitação. De fora deste modelo ficam todas as famílias reconstituídas, a parentalidade alargada, as constelações não monogâmicas, a monoparentalidade por escolha, separação ou viuvez, ou todos os modelos de família que não comportam laços erótico-afetivos. De fora ficam também as famílias – tantas – de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans e intersexo.

Portanto, quando se fala na necessidade de defender a família, não estamos, na verdade, a pensar na família enquanto espaço de afetos, liberdade e segurança, mas antes de um modo muito particular e estreito de estar em família. É a chamada família pequenina. Pensemos então na Família, assim, com maiúscula. Ela é diversa, plural, caleidoscópica, em crescimento e transformação – como os seres humanos, também a família não pode escapar ao tempo nem cristalizar-se. E assim é também com as crianças e jovens a quem, por puro idadismo, lhes é recusada a ousadia de saberem – de sempre terem sabido – quem são.

O segundo elemento reporta-se à ideologia de género. Uma tomada de posição por parte de um grupo de profissionais de saúde de religião católica sustenta que esta lei não se baseia em "novas descobertas científicas, nem tão-pouco foi pedida pelos médicos portugueses", sendo suportada por uma "ideologia de género", que é "uma construção cultural, um produto da cultura e do pensamento humano, sendo totalmente desvinculada da biologia". Esta formulação é, em si mesma, de uma complexidade ideológica notável e coloca-nos perante um desafio – compreender que profissionais de um qualquer ramo científico descredibilizem um facto apenas por este ser “um produto da cultura e do pensamento humano”. No limite, poder-se-ia dizer que o modelo judaico-cristão de medicina que preconizam está totalmente desvinculado da racionalidade.

Se as crianças são parte importante do futuro de que importa cuidar, talvez valha a pena informar as médicas católicas de que 42% da juventude portuguesa não se identifica com nenhuma religião.

Posto isto, podemos agora colocar a religião no lugar a que pertence num Estado de direito e laico, e deixar o legislador cuidar do superior interesse de todas as crianças, e não apenas daquelas autorizadas pela crença? De passagem, podemos também abandonar o idadismo paternalista e parar de transferir para a comunidade médica o monopólio da determinação acerca de corpos que não são, manifestamente, os seus, tomando decisões (essas, sim, definitivas) acerca de experiências que desconhece? Por fim, na esteira de Paul B. Preciado, podemos saber quem defende, afinal, o superior interesse da criança trans e intersexo?


 
 
pessoas
Ana Cristina Santos



 
temas
intersexo    identidade    transgénero    crianças