Olhando para 1974 quarenta e quatro anos depois, é inevitável que algumas páginas da agenda da memória desse período já se encontrem esbatidas. Mas a revisitação desses tempos, ainda que num registo subjetivo, pode ilustrar novas facetas da exuberância coletiva e envolvimento pessoal de um período a diversos títulos extraordinário. O 25 de Abril pode, portanto, ser tomado como um conceito desdobrável em variadas dimensões, onde o lado individual se confunde com o sentido comunitário. Lembrar a entrega vertiginosa desse período (foram cerca de dois anos que equivaleram talvez a duas décadas), a sua invocação festiva não pode esquecer que esse foi também um tempo traumático para uma parte da sociedade. Muitos dos ditos reacionários, saneados, fugitivos, patrões, retornados, burgueses ou acusados de fascistas não foram senão vítimas dessa exaltação das massas. Apesar de animados por genuínos sentimentos de generosidade, a entrega inebriante a essa onda de redenção revolucionária, impedia-nos de perceber que eramos ao mesmo tempo peças de um xadrez político mais poderoso (jogado no palco internacional).
Consigo recordar esse dia com algum pormenor. A travessia de Lisboa naquele dia 25/04/1974 entre Moscavide e a estação do Rossio pode assemelhar-se àquelas viagens improváveis em que o turista ingénuo e distraído opta, sem o saber, pelo destino mais arriscado e de repente vê-se no centro do vulcão. No meu caso, porém, não assisti nem a rebentamentos nem a tiroteios, até porque não os houve, nem mesmo à euforia popular – com muita pena minha – no momento mais genuíno da festa dos cravos, quando a multidão coloriu a baixa de Lisboa numa celebração coletiva sem precedentes no Portugal moderno. Mas disso só me dei conta mais tarde. Naquele dia de manhã segui tranquilamente sentado no primeiro andar do autocarro nº 8, pelos Olivais, Encarnação, Rotunda do Relógio, Areeiro, Almirante Reis e desci no fim da linha, que era no Martin Moniz. Depois, atravessei a pé a Rua Barros Queiroz e cheguei à estação, entrei no comboio que me levou até à Amadora, onde estava na tropa no então RI 1 (mais tarde quartel dos Comandos). Mas não, não tinha na altura uma consciência política da situação; algumas vezes corri à frente da polícia de choque antes do 25 de Abril, mas isso não fez de mim um “resistente”. Como era uma quinta-feira, as preocupações dos meus 22 anos estavam seguramente mais focadas nos convívios e encontros agendados para o fim-de-semana seguinte, do que nas movimentações militares dessa madrugada histórica. Recordo que, já no comboio a caminho do meu destino, notei que outros militares sussurravam entre si, sentados frente a frente num banco próximo de mim. Quando finalmente atravessei os portões do quartel deparei-me com o alvoroço instalado e fui informado que a minha companhia já tinha saído para Lisboa para integrar a Revolução. Em todo o caso, como a minha especialidade era “armas pesadas”, o meu lugar era no quartel. No bar dos sargentos soava o hino militar do MFA e todos fomos seguindo as notícias que jorravam da rádio, minuto a minuto. Muitas emoções e muita confusão, mas por volta do meio-dia a festa tomou conta de tudo. Porém, só nos dias seguintes é que soubemos os detalhes daquela fascinante aventura das noites sem dormir no centro da cidade.
De imediato, teve início a radicalização política, cujo palco foi por excelência a rua, num processo que começou naquele exato dia, mas se estendeu por mais um ano e meio (até 25 de novembro de 75), quando Jaime Neves e Ramalho Eanes entraram em cena (pondo fim a esse período que ficou conhecido por PREC: processo revolucionário em curso). As mobilizações populares começaram a ganhar contornos revolucionários sobretudo a partir do primeiro 1º de Maio em liberdade. Foi aí que senti o quanto valia a honra de vestir aquele camuflado do exército. O valor simbólico de ter contribuído, por pouco que fosse, para libertar a sociedade das amarras da repressão obscurantista herdada do salazarismo. Nas ruas, a população aplaudia-nos, abraçava-nos, oferecia-nos cigarros e emitia repetidos sinais de júbilo pela conquista da liberdade. Pouco depois começou o processo de politização/ partidarização. Os partidos e movimentos multiplicaram-se, as siglas e bandeiras das mais diversas cores – onde pontuava o vermelho – passaram a dominar as ruas e avenidas. Lutas, mobilizações e euforias em torno da ideia salvífica de socialismo, ao mesmo tempo que nos dividiam, uniam-nos. Nos quartéis, ansiava-se pelo fim imediato da guerra colonial, a separação de águas entre quem era a favor da revolução e quem era “reacionário”. As pichagens, slogans e símbolos partidários passaram a dominar os muros e fachadas de ruas inteiras.
A resistência à tentativa de contragolpe em 28 de setembro desse ano foi um momento alto na exaltação antifascista e talvez a primeira prova de solidez da democracia. Nas escolas e universidades os plenários de alunos e o poder crescente do associativismo, nos bairros de lata as associações de moradores e os mais diversos projetos participativos “casas sim, barracas não!” (e as experiências de autoconstrução que culminaram com o sucesso do projeto SAAL, apoiado oficialmente pelo MFA), ações de ocupação de casas devolutas na cidade, cuja conquista era para nós sinónimo da tomada de assalto ao “poder burguês”, celebrada pela noite dentro entre conversas intensas, copos e garrafas de boca em boca e muito fumo em salas mal iluminadas. Tudo era revolucionário, inclusive o amor. Campanhas, proclamações, discussões intensamente participadas e lutas ideológicas infinitas prolongavam-se pelas noites e madrugadas nas principais praças da cidade ou nas esquinas e jardins de cada bairro. Comícios e sessões de esclarecimento, reuniões e espetáculos musicais com os cantores de intervenção levavam-nos a deambular pelo país, sobretudo no centro e sul.
A essas primeiras ações vertiginosas de 1974 juntaram-se, mais tarde, outras lutas e momentos emblemáticos como os casos do jornal República, a ocupação da Rádio Renascença ou o famoso juramento de bandeira de punho erguido no RALIS (“juramos estar ao serviço da classe operária e do povo trabalhador!...”). Nas fábricas e empresas multiplicaram-se as comissões de trabalhadores e o campo sindical ganhou força, mas de unitário e participativo evoluiu rapidamente para a divisão que ainda hoje se mantém, com os respetivos partidos a manipular a ingenuidade dos trabalhadores. Para alguns setores da esquerda já estávamos às portas do socialismo pelo que se justificava, por exemplo, um dia de trabalho voluntário (para a Nação), mas a maioria dos trabalhadores não ia nessa conversa. As greves, lutas laborais, manifestações e contramanifestações tornaram-se parte do dia-a-dia, culminando com o cerco à Assembleia Constituinte, já em novembro de 1975. Como ativista sindical, membro de uma comissão de trabalhadores e militante num dos partidos de esquerda (UDP) integrei muitas dessas lutas e envolvi-me nos infindáveis conflitos ideológicos próprios da época, vendi jornais nas ruas, distribui panfletos à porta das fábricas e colei cartazes nas ruas escuras de bairros operários ou zonas industriais como Alcântara, Poço do Bispo, Cabo Ruivo, entre outras, no centro e periferia da capital. Houve ameaças e até agressões violentas nessas contendas.
É claro que toda esta pulsão das classes populares teve um impacto decisivo na Revolução dos Cravos. Na verdade, a rutura sociopolítica que atingiu o país consubstanciou-se nessa dupla dimensão: a força da rua e a disputa institucional. Mas convém não perder de vista que no meio desse imenso mar de mobilizações, poderes mais altos se moviam, tornando-se decisivos na definição da correlação de forças que então definiu o nosso destino coletivo. Isso não diminui, contudo, o significado da ação coletiva dos movimentos populares e suas vivências subjetivas, como parte do património democrático gerado no tempo vertiginoso de 1974-1975.