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13-04-2018        Público

Quem está na nossa memória como referência de um outro mundo possível? Porque celebramos tão poucas heroínas, e menos ainda, oriundas do Sul?

Os silenciamentos e as mentiras da história dizem-nos tanto como as verdades. Abrir a história é sempre um desfio democrático, deixar que todas e todos os que integram uma determinada comunidade, se sintam parte dela, porque a sua história também é conhecida.

A exploração económica capitalista e colonial não é compreensível sem a emergência do outro como sujeito racializado, sub-humano; a negação total da humanidade dos sujeitos que habitavam o Sul aponta uma barreira ontológica de reconhecimento da história que se viveu para lá dessa linha. A história desse lado é contada primordialmente a partir do que os europeus consideram ser a história do outro lado; ou seja, é uma história parcial, repleta de meias verdades e silenciamentos.

Se nos centramos apenas na fratura produzida pela diferença colonial torna-se difícil identificar outras fraturas, igualmente perversas. É exemplo desta aliança perversa o pacto singular entre a tradição política e filosófica eurocêntrica, onde as mulheres têm sido representadas como subalternas, e as estruturas políticas heteropatriarcais nos espaços coloniais. Esta dupla articulação de formas de poder vai criar, do outro lado da linha, no espaço colonial, uma dupla subalternização – a mulher colonizada, vista unidimensionalmente, pelo olhar colonial, como um corpo despojado de saberes, incapaz de lutar. A consequência imediata desta dupla opressão foi a tentativa de exclusão das mulheres da esfera pública colonial. Este duplo apagamento continua a mostrar quanta luta há ainda por lutar.

Mas pequenos eventos sinalizam mudanças. Indico de seguida três momentos que anunciam uma abertura da história a figuras que celebramos pela sua luta contra o colonialismo e o heteropatriarcado, e que nos mostram também como a misoginia colonial é insidiosa e continua presente. Apesar das mulheres do Sul lutarem pelos seus direitos, continuam a ser estigmatizadas e esquecidas.

Ungulani Ba ka Khosa, um escritor moçambicano, acaba de lançar um livro intitulado «Gungunhane». Parte da narrativa acompanha a vida das setes esposas oficiais do imperador de Gaza, que o acompanharam na viagem de degredo para Lisboa, no final do séc. XIX. As rainhas que sobreviveram ao degredo e regressaram a Moçambique foram removidas da história, quer colonial, quer atual. Este desinteresse não é casual. Importava omiti-las pelo que representam – um símbolo em Moçambique de um outro poder nacional anterior à presença colonial, e o exemplo de resistência digna, silenciosa, à violência do heteropatriarcado, do colonialismo e da história dos vencedores. É muitas vezes pelo silenciamento que a história apaga, exclui e distorce o papel das mulheres na história política, pela transformação da sua resistência num substantivo coletivo - mulheres de Gungunhane.

A luta contra o colonialismo tem combinado várias formas, do protesto pacífico à luta armada. E nestas lutas o papel das mulheres é fundamental. Como não falar do papel das mulheres na luta pela abolição de uma das formas mais arreigadas de discriminação, o apartheid na África do Sul? Winnie Madikizela-Mandela, presa política nº 1323/69, dispensará apresentações. Uma líder da luta pela democracia, pelo direito à igualdade de voto, pelo direito a ser dignamente humana. Mas porque será que esta figura suscita tanta controvérsia? Será que nos esquecemos já do que significou o regime do apartheid, um regime de ocupação tão errado que transformou os negros sul-africanos em sub-humanos? É fácil desejar transições pacíficas, que garantam o status quo de quem está no poder. Mas onde estavam os governos dos países europeus, democratas, quando importava destruir o apartheid? Esquecemo-nos que para derrubar um regime tão violento foi necessária a força de todos os que solidariamente aceitaram lutar. E lutar de forma revolucionária, simples. Aceitar violar os códigos legais que legitimavam o apartheid. Foram pessoas que aceitaram morrer e matar se necessário, pela liberdade. Winnie lutou mais de 30 anos pela democracia na África do Sul, ferozmente e sem remorsos.

Mas este reconhecimento não é fácil, talvez porque os homens a Norte e a Sul tenham dificuldade em reconhecer a força das mulheres na luta. Ou talvez a reconheçam e a temam. A Dinamarca, um país que muitos desconhecem ter tido colónias, acaba de inaugurar uma estátua honrando uma mulher negra. Esta estátua, feita por duas mulheres, representa Mary Thomas, também conhecida como Rainha Mary. Com o apoio de outras mulheres, Mary conduziu uma rebelião contra o poder colonial dinamarquês nas Índias Ocidentais. Como as artistas sublinharam na página web deste projeto, trata-se da primeira escultura que retrata a memória da violência colonial dinamarquesa nas Caraíbas, uma homenagem às mulheres que desafiaram o poder colonial. Tal como as esposas de Gungunhane e Winnie, também estas mulheres, após o fracasso da rebelião, cumpriram pena em Copenhaga. Mas hoje são lembradas pela sua resistência. E se a Dinamarca tem esta estátua que memorializa outra história, talvez a deva à força de duas artistas que a criaram, Jeannette Ehlers e La Vaughn Belle. Duas mulheres que desafiaram a misoginia colonial e, com esta estátua, colocam um desafio às referências que norteiam a escrita da história da Europa no mundo.


 
 
pessoas
Maria Paula Meneses



 
temas
racismo    mulheres    colonialismo    história