Aprendi, nas aulas de economia e, em particular, com economistas qualificados com quem tenho trabalhado, que os filósofos iluministas que no século XVIII pensaram o capitalismo antes de ele existir, imaginaram uma sociedade em que o trabalho se dividiria entre indivíduos tornados especialistas em determinadas atividades produtivas e ao mesmo tempo mercadores. Imaginavam essa sociedade não só próspera, como pacífica. Para eles, o comércio, ao contrário da guerra e da pilhagem, representava uma forma “doce” de relacionamento que possibilitava, a todos e a cada um, acesso aos bens de que necessitavam e não produziam, em troca do que produziam e não necessitavam para consumo próprio.
Dessa visão da sociedade de mercadores confinada a cada nação, os tais filósofos iluministas, passaram rapidamente à imaginação do “funcionamento” do mundo. Se cada nação se especializasse no que produz melhor e mais barato, trocando os seus excedentes pelo que outras nações produzem com igual vantagem, todos sairiam a ganhar. Assim teríamos prosperidade e paz.
Ora, vivemos hoje perante perigos de uma guerra comercial em gestação. O diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) ainda esta semana deixou vários alertas. Precisávamos de uma OMC atualizada, capaz de gerar e fazer funcionar compromissos internacionais globais e de incentivar relações bilaterais sérias e profícuas.
Trump pode impor as tarifas que entender, mas as réplicas são inevitáveis e colocam-nos em “cenário ruim”. A imposição da sua ordem e verdade terá cada vez menos possibilidade de vingar e só teremos solução para as atuais tensões se houver respeito pelos direitos e interesses de todos, e se houver coragem para desmontar a crença no absolutismo das vantagens do livre comércio, interno e internacional. É preciso considerar o outro lado da moeda pois, como em tudo na vida, há limites para essas vantagens. Há custos não tidos em conta. Consideremos apenas três.
O primeiro é óbvio. O indivíduo especializado numa única atividade passa a depender de todos os outros para satisfazer as suas necessidades. Enquanto a sua produção for procurada pode obter aquilo de que necessita vendendo o fruto do seu trabalho no mercado. Mas se o seu produto se tornar obsoleto, ou passar a ser oferecido por outros com vantagem, então tem um problema. O mesmo aconteceria com um país. Especializado - seja em matérias-primas, como já aconteceu a algumas ex-colónias, seja em produtos industriais tornados obsoletos, seja em serviços com procura volátil, como nos pode suceder com o turismo – um país torna-se vulnerável. Além disso, há imponderáveis, conflitos que interrompem fluxos comerciais. Seria sensato um país que abdicasse de capacidade de abastecimento alimentar?
O segundo é menos óbvio. Assim como acontece com uma pessoa que se aperfeiçoa numa profissão, tornando-se ao mesmo tempo muito incapaz em tudo o resto, também um país pode perder saberes e capacidades com a especialização. Tal como nos ecossistemas, também numa economia a diversidade é condição de sobrevivência e de evolução.
O terceiro mais subtil ainda, mas não menos importante. Num mundo especializado, as matérias-primas e as mercadorias têm de ser transportadas, por vezes a grandes distâncias. Os custos diretos dos transportes são incorporados no preço dos bens, mas os custos ambientais são, em larga medida, ignorados pelo que se coloca a questão de saber se não seria preferível produzir localmente, mesmo quando os custos de o fazer são superiores aos de importar de outro continente.
A tudo isto acresce que no comércio dito livre, a liberdade é pouco livre. Além de julgamentos questionáveis sobre vários pressupostos dessa liberdade, existem sempre mecanismos de proteção impostos pela parte mais forte na negociação, nomeadamente patentes e direitos de propriedade intelectual, que têm como função proteger os países tecnologicamente mais avançados da concorrência de terceiros.
Embalados nas crenças liberais, ultrapassamos os limites da sensatez na especialização e no comércio internacional. Para lá desses limites o “doce” comércio azeda, podendo transformar-se numa guerra capitaneada pelas mais indesejáveis personagens.