Perante as medidas de legislação laboral apresentadas pelo Governo é quase irresistível recorrer à metáfora do copo de água. Vários atores políticos e sociais retrógrados já gritavam que o copo estava a transbordar, mesmo antes de o Governo ter vertido alguma coisa para dentro dele. Há setores da Direita conservadora e patrões que consideram uma afronta pôr-se em causa as receitas que a Troica e o Governo PSD/CDS cá deixaram no domínio da legislação laboral. A oferta foi choruda e querem consolidá-la para o futuro. Conhecedores profundos de que a estrutura e o funcionamento da Comissão Permanente de Concertação Social são desfavoráveis aos trabalhadores, tudo farão para tentar que esse órgão “vete” qualquer reposição de direitos ou introdução de novas regulações que travem a precariedade e a proliferação de baixos salários.
As pressões já começaram. Por agora, as atitudes de indignação traduzem-se na ameaça de não participarem no debate. Rapidamente passarão à exigência de lhes serem dadas chorudas compensações para estarem no debate. Para eles, qualquer reequilíbrio ou melhoria da legislação laboral deve dar-lhes o direito de extorquir um preço aos trabalhadores e aos contribuintes.
Para os trabalhadores, para os sindicatos e para a maioria dos atores económicos, sociais e políticos, pode ser uma tentação perigosa, reduzir a questão aos termos do copo meio cheio ou meio vazio. A favor da tese do copo meio cheio está o que parece ser um razoável diagnóstico sobre a precariedade e a “segmentação”, estão intenções de colocar a nu procedimentos marginais em que se formulam certos vínculos laborais, e o propósito de eliminar (será?) os bancos de horas individuais. Mas a dar dimensão à hipótese do copo meio vazio está a maior parte do resto, que é muito: desde logo, uma abordagem muito insuficiente e duvidosa (pelo que se conhece até agora) da importante questão da caducidade das convenções coletivas; e a ausência de respostas imprescindíveis no que se refere ao respeito pelo princípio da existência de normas mínimas. Em limite, poderiam identificar-se as exceções e o controlo rigoroso sobre elas. Na legislação da OIT, em normas da União Europeia (agora propositadamente esquecidas), este princípio é considerado fundamental, não apenas para a regulamentação do trabalho, mas também como elemento estruturante do Estado Social de Direito Democrático.
As medidas são limitadas. Acresce que uma parte do que está no copo tanto pode ser uma coisa como outra, dependendo da especificação das medidas. Tomemos, por exemplo, a questão da taxa imposta à hiper-rotatividade dos contratos. É um preço, ou uma multa? É um preço que as empresas podem pagar e que depois de pago torna legítima a hiper-rotatividade? Ou é uma multa que pune, não legítima e obrigará a corrigir o comportamento? Questões semelhantes que escondem ausência efetiva de tratamento dos problemas existem noutros domínios de política.
Assim, se a hiper-rotatividade continuar a ser encarada com naturalidade, se a taxa criada for irrisória e se a inspeção do trabalho continuar a não dispor de meios suficientes, tudo indica que a medida não venha a ter qualquer efeito e até possa atuar perversamente em sentido contrário ao desejado. Mas se o caso for outro – censura social do abuso aos contratos a prazo, taxa dolorosa e mais inspeção – então a medida poderá contribuir para mitigar o problema. O mesmo princípio se aplica noutras matérias. É tempo de se lembrar, por exemplo, como em Portugal se combateu com sucesso o trabalho infantil. Houve necessidade de forte penalização social e duro combate no terreno. E valeu a pena.
O facto de o diabo estar nos detalhes remete para a necessidade de se trazer o debate sobre estas propostas para fora do recinto da Concertação Social. Na Assembleia da República exige-se qualidade e rigor. Os sindicatos têm de ser ofensivos, as empresas e as organizações patronais tem o direito e o dever de expor os seus argumentos, a comunicação social deve dar espaço qualificado e a academia não deve ficar ausente. Isso será bem mais importante do que ficar a discutir-se se o copo está meio cheio ou meio vazio.