Portugal vive uma situação económica positiva, os resultados alcançados no emprego e no desemprego são quantitativamente bons, o governo dispõe de apoios políticos e dos cidadãos que fornecem estabilidade à governação do país, mas numa reflexão acrescida revelam-se muitos nós górdios por desatar.
As crises económicas não são como as febres que vêm e vão deixando, em regra, o paciente são e salvo, ou até imunizado. As crises económicas, sobretudo quando curadas com medicamentos tóxicos, deixam sempre o paciente mais vulnerável a novas infeções do mesmo tipo ou de tipo diferente. Há efeitos cumulativos, de médio e longo prazo, que dificultam a recuperação. A crise que vivemos e as políticas económicas e sociais impostas, debilitaram-nos, pelo menos de quatro maneiras.
A primeira. A crise causou recessão ao mesmo tempo que agravou o défice das contas públicas durante vários anos. Em consequência, a dívida pública e o seu peso no produto aumentaram muito. Apesar do crescimento económico entretanto registado, o peso dos juros e a pressão para a amortização da dívida não permitem que se faça a despesa pública necessária para garantir a provisão de serviços públicos e para o investimento. Ficou limitado o potencial de crescimento futuro e de desenvolvimento da sociedade. Os efeitos do endividamento público causado pelo “ajustamento” da troika e do PSD/CDS são assim cumulativos.
A segunda. A recessão e o desemprego expulsaram de Portugal alguns dos segmentos mais jovens e qualificados da população ativa. A falta de trabalhadores em geral e de trabalhadores qualificados em particular sente-se em diversos sectores. A emigração continua porque o diferencial de salários e de condições de trabalho entre Portugal e outros países europeus se alargou. A emigração reduz o potencial de crescimento e tolhe o nosso futuro coletivo. Tudo isto com efeitos cumulativos.
A terceira. A recessão comprimiu o investimento, não permitindo repor o stock de capital fixo, manter as infraestruturas e atualizar a tecnologia. O fosso que separa Portugal, em capacidade instalada e sofisticação tecnológica, da maioria dos países do seu espaço de integração económica parece estar a aumentar. Na medida em que o novo investimento depende também da qualidade das infraestruturas, da existência de fornecedores capazes e de clientes específicos, o potencial de atração ou de fixação de investimento pode estar a degradar-se. A queda do investimento tem múltiplos efeitos cumulativos.
A quarta. As desigualdades aumentaram. Os desníveis nos salários e nas condições contratuais da geração que entrou no mercado de trabalho nos últimos 15 anos e da que agora se aproxima da idade ativa agravaram-se. Isso significa que as suas oportunidades e condições de vida futura regrediram. As condições que poderão oferecer aos seus filhos, nomeadamente no plano da educação ou de acesso a direitos fundamentais podem bem ser menores do que aquelas de que eles próprios beneficiaram. O potencial de crescimento futuro degradou-se. As desigualdades têm efeitos cumulativos.
O mal está feito. O que é preciso agora é descobrir como reverter os efeitos cumulativos da dívida, da emigração, do desinvestimento, do emprego mal remunerado e muito precário, das desigualdades, da persistência da pobreza. Há nós górdios que urge desatar: renegociar a dívida pública e as condições da sua amortização com o maior credor – o Banco Central Europeu; contribuir para uma reforma da União Económica e Monetária que afaste a atual camisa-de-forças; condicionar as políticas de distribuição gananciosa de dividendos e de investimento especulativo, procurando que os excedentes de exploração revertam para o investimento produtivo.
Reativar as instituições e as práticas que enquadram as relações laborais para uma valorização do trabalho, com melhores salários e menos precariedade, é objetivo premente que exige mudanças na legislação laboral, reequilibrando poderes que facilitem a negociação. Esta semana espera-se do governo um sinal de que vai por este caminho, através da sua proposta de revisão da legislação laboral. Há nós górdios em que o desatar é impossível e se impõe, com todos os cuidados, o corte.