No contexto africano, a luta pela terra usurpada pela violência colonial prossegue, sinal que a independência política e a ampliação democrática não são sinónimo da plena liberdade e dignidade. Na África do Sul, mais de duas décadas após a transição democrática, a herança do apartheid mantém-se, com a maioria da terra arável concentrada nas mãos de uma minoria de fazendeiros brancos. Neste contexto, falar da terra é reconhecer que para a maioria dos sul-africanos as injustiças históricas não foram ultrapassadas.
Um dos elementos fundacionais da apropriação colonial da terra aconteceu com a conferência de Berlim (1884-85), cujo acordo final abriu espaço para os países europeus partilharem África entre si, condenando o continente ao peso da colonização, cujos efeitos se fazem ainda sentir. Uma das características deste moderno projeto colonial assentou na criação de uma hierarquia intelectual, onde as tradições culturais e intelectuais eurocêntricas são impostas como ‘os’ referenciais universais legítimos, porque autodefinidas como superiores e mais avançadas. A conceção de humanidade que os europeus (sinónimo de brancos) impuseram foi acompanhada do conceito de sub-humanidade atribuída a africanos, porque considerados atrasados.
No séc. XIX inicia-se, pois, o ciclo da imposição de normas jurídicas modernas, europeias, que estão na origem dos projetos dos modernos estado-nação no continente, sobrepondo-se a outros regimes normativos existentes. O Acordo de Berlim abriu caminho para transformar os territórios e estados políticos existente em ‘terra de ninguém’, reclamável pelas potências coloniais. Casos houve em que a partilha do continente aconteceu através da conclusão de ‘acordos’ com lideranças africanas, mas na maioria das vezes as modernas leis coloniais legitimaram a expropriação e a remoção forçada de comunidades das suas terras.
No contexto sul-africano, o funcionamento do regime do apartheid assentou na expropriação da terra da população nativa e no rígido controle político desta maioria, sem direitos de cidadania. No pós-apartheid, uma das exigências democráticas, consagrada na constituição de 1996, foi a da redistribuição pacífica da terra. Convém lembrar que a reforma fundiária assentou em 3 pilares: segurança da propriedade, redistribuição e restituição da terra. Porém, o programa de redistribuição de terras saldou-se num fracasso, explicado pela ineficiência institucional, corrupção, burocracia, entre outros. É isto que explica os dados de um estudo recente que revelou que 72% da terra arável continua na mão de proprietários brancos.
O insucesso da redistribuição e a pressão popular pela terra levaram o parlamento sul-africano a assumir o desafio transformador da reforma agrária, onde a restituição assume um papel central para resolver injustiças e desigualdades históricas. O debate público em curso sobre a expropriação da terra sem compensação, sufragado maioritariamente pelo parlamento sul-africano no início de março é importante, promessa de uma reforma constitucional para que a expropriação aconteça. Se esta alteração ameaça os direitos de propriedade em que assenta a economia de mercado, a pressão para que a reforma agrária aconteça é a expressão mais significativa da ira da maioria dos sem terra face à manutenção das desigualdades herdadas dos tempos do apartheid.
No atual contexto sul-africano a ‘terra’ tem uma importância simbólica profunda: integra o valor económico, da agricultura, mas simboliza também, como noutros contextos pós-coloniais, a exigência da maioria do retorno da terra ao povo. É por isso que a expropriação sem compensação é apoiada por muitos grupos que não estão ligados à agricultura. Haverá quem se oponha, invocando o espectro da instabilidade económica e social, mas uma decisão recente do Tribunal Constitucional sul-africano sublinha que qualquer transformação para corrigir o desequilíbrio histórico causado pelo passado injusto de discriminação “não pode ser sacrificada no altar da estabilidade; deve ser realizada de forma responsável e os seus impactos prejudiciais minimizados”. Como vários defendem, democratizar o acesso à terra necessita acontecer através de consultas populares, que permitam encontrar soluções em consonância com as necessidades dos que trabalham e vivem da terra. Esta é uma decisão soberana sul-africana, e poderá ser um exemplo de solução negociada da questão fundiária em tempos pós-coloniais.