10-05-2006 Diário Económico
A avaliação tecnológica não deve ficar confinada a empresas ou a comissões de peritos, sob pena de virem a aumentar as desconfianças.
O plano tecnológico lançado pelo Governo constitui mais um sinal da fé que os políticos, em Portugal como noutros países, colocam na tecnologia e na inovação como a solução de muitos dos problemas económicos e sociais.
O discurso político dominante omite, porém, em regra, os constrangimentos enfrentados pela tecnologia para poder integrar-se harmoniosamente na sociedade democrática. Como observou o sociólogo Zygmunt Bauman, a tecnologia constitui um sistema fechado, que se legitima a si próprio. Aceita-se, sem se discutir, que o seu desenvolvimento obedece a uma dinâmica irreversível. Se ela traz consigo problemas, o que há a fazer é procurar novas soluções tecnológicas para os resolver. Ora, a crença na bondade da tecnologia, que tem justificado o seu estatuto de "intocável", tem vindo, ultimamente, a atenuar-se. A percepção de incertezas e riscos que acompanham algumas aplicações tecnológicas (problemas de segurança, poluição, saúde, privacidade) e o segredo que envolve uma parte importante das actividades de investigação e desenvolvimento nas empresas têm causado um crescente desconforto.
Na realidade, o desenvolvimento tecnológico e a inovação são sustentados, em larga medida, por investigação realizada no seio das empresas – em particular, das grandes empresas multinacionais - ou sob contrato entre estas e as instituições científicas. Esta actividade é, por norma, protegida por cláusulas de segredo e obrigações de confidencialidade. Justificada embora com o argumento de que, na sua ausência, desapareceria o incentivo das empresas a inovar, essa protecção tem o efeito de ocultar informação susceptível de permitir conhecer melhor, quer as utilidades, quer as consequências eventualmente nefastas de determinadas tecnologias. O jornal britânico The Independent dava conta, há algum tempo, de estudos secretos (’secret research’) da Monsanto, gigante da produção alimentar geneticamente modificada, que revelaram transformações fisiológicas preocupantes em ratos alimentados com milho transgénico. A Monsanto recusara-se a divulgar o estudo com o argumento de que ele continha informação de interesse comercial susceptível de ser utilizada por concorrentes. Em declaração recente, um alto responsável da empresa afirmou estar "fora de questão", pelo mesmo motivo, colocar no domínio público dados sobre a eventual toxicidade dos OGMs .
Compete, naturalmente, às autoridades reguladoras controlar a qualidade e a segurança de novos produtos e actividades. Mas subsistem legítimas dúvidas quanto à eficácia desse controlo, precisamente por ele se fundar em dados, com frequência, confidenciais, fornecidos pelas empresas. Estas dúvidas têm sido manifestadas, nas últimas semanas, em relação à recém-criada Autoridade Europeia de Segurança Alimentar.
Como escreveu Norberto Bobbio, "uma das virtudes da democracia é manter o segredo como excepção". Porque a tecnologia condiciona, hoje, decisivamente, as condições e modos de vida dos cidadãos, é lícito questionar que ela se mantenha como um universo fechado.
A história da resistência social a certos projectos tecnológicos (energia nuclear, biotecnologias, organismos geneticamente modificados) tem posto, aliás, em evidência que os receios e polémicas eclodem, quase sempre, porque os processos de avaliação tecnológica deixam à margem preocupações sociais, valores éticos e culturais e a legítima aspiração dos cidadãos à informação e à participação.
A avaliação tecnológica não deve, pois, ficar confinada a empresas e laboratórios ou a comissões de peritos, sob pena de virem a aumentar as desconfianças e, em última análise, os bloqueios à introdução e à utilização plena e sã de novas tecnologias. Ela deve dialogar com utilizadores, consumidores e, de um modo geral, com a sociedade. Mas, para que isso aconteça, é indispensável, não só um repensar das instituições reguladoras do Estado tendo em vista maior transparência e participação nestes domínios, mas também uma mudança da cultura e prática das empresas no sentido de formas de responsabilidade social mais alargadas.