Serve esta introdução para ajudar a perceber que, assim como quando defendemos o direito ao aborto legal e seguro não estamos a falar (necessariamente apenas) entre ou para profissionais de saúde, quando o tema é linguagem inclusiva não estamos a falar (necessariamente apenas) entre ou para linguistas. Não se trata sequer de falar, mas de escutar – e é esse o ponto que vira do avesso a controvérsia reavivada por Ricardo Araújo Pereira (RAP) num texto trágico-cómico que procura descartar a justa expetativa de inclusão sexual na linguagem cobrindo-a de ridículo. É um mecanismo gasto, que a história ensina a desmontar: sempre que uma mulher se insurge contra uma tradição sexista, como o assédio de rua, sucedem-se as tentativas de descredibilização, frequentemente sob chavões como “radical”, “feminismo exacerbado” ou “histeria”. O artigo de RAP é constrangedor porque ilustra hoje aquilo que se ensinava nas aulas de sociologia há 25 anos: um dos maiores obstáculos ao conhecimento é o pendor autoritário do senso comum. Trata-se de deslegitimar quem se sente desconfortável com o universal masculino, justamente para manter o masculino universal. Felizmente, recomendações internacionais em matéria de linguagem inclusiva por parte de organismos como o Conselho da Europa permitem colocar RAP no lugar profissional de humorista a que, com todo o mérito, pertence.
Simplificando: havendo pessoas que se sentem excluídas pelo uso do universal masculino, emerge o dever de escutar e agir. A partir daí, considerandos estéticos ou de outra ordem deixam de ter cabimento. O monopólio do conhecimento disciplinar não se sobrepõe ao bem-estar individual. Não há equivalência entre a imposição de um modelo único de comunicação e o direito à representação. Não há igualdade numa estratégia discursiva que remete cada palavra para o universo dos homens, invariavelmente, uma e outra vez, recusando-se a identificar o regime dominante de género que determina o modo como comunicamos.
Em que consiste então a demanda por uma linguagem inclusiva? A linguagem inclusiva reporta-se à comunicação que inclui, sem ambiguidade ou entendimentos tácitos, mulheres, homens e pessoas não-binárias. Neste modelo de comunicação rejeita-se a utilização do masculino genérico enquanto fórmula neutra, e a neutralidade de género obtém-se por recurso a palavras efetivamente genéricas, como docente em vez de professor ou estudante em vez de aluno. Esse desafio torna-se mais interessante no caso de línguas fortemente genderizadas, como a portuguesa. E se, em contextos informais, se recorre à simpática arroba (“tod@s”) ou ao porventura menos legível X (“todxs”), a formalidade da escrita académica obriga a formulações ricas em barras e duplicação, nos casos em que a neutralidade de género não é possível de outra forma. Um documento de referência continua a ser o Guia para uma Linguagem Promotora da Igualdade entre Mulheres e Homens na Administração Pública, redigido por Graça Abranches em 2009 e publicado, em acesso livre, pela Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género.
Há quem considere tudo isto um não-tema, inútil, uma maçada, perigosa até, por desvirtuar ora a língua portuguesa, ora os grandes temas da agenda feminista ‘séria’. E é justamente em momentos assim, quando embatemos numa hierarquia entre temas maiores e menores em matéria de igualdade, ou em que o alegado rigor linguístico se sobrepõe ao reconhecimento da diversidade humana, que se percebe o mérito deste debate. No debate sobre linguagem inclusiva, a palavra-chave é inclusão. E não pode haver inclusão se 52% da população continua a ser abusivamente subsumida num Cartão do Cidadão, para citar apenas um exemplo.
Apagar a diversidade de género da língua que utilizamos para a comunicação oral ou escrita é uma forma de violência acarinhada culturalmente e com impactos simbólicos sobre as mulheres. Acresce que a recusa militante do uso da linguagem inclusiva sinaliza cumplicidade com uma agenda patriarcal, que passa por ridicularizar exigências feministas, sejam elas a linguagem inclusiva, a legislação contra piropos ou a denúncia da violência sexual.
Mas para que não restem dúvidas acerca das implicações políticas da linguagem inclusiva, cabe propor-se um teste simples, a aplicar nos universos mais variados em que nos movemos – procuremos, por um dia, utilizar de forma sistemática e consistente o universal feminino quando falarmos em público, anotando reações suscitadas. Se porventura o uso experimental do feminino genérico for confrontado com natural indiferença, então sim, estamos conversadas. Até lá, um cachimbo continua a ser um cachimbo.
Nota da autora: La trahison des images, pintada em 1929 por René Magritte, constitui uma obra central da corrente surrealista que convida a questionar a relação entre objeto e a sua representação.