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24-02-2018        Público

Olhando para o aumento do número de animais domésticos nos últimos anos em Portugal, e por outro lado para os casos de abandono ou de violência doméstica, houve quem invocasse a velha fórmula “quanto mais conheço os homens mais gosto dos animais”. Tais estatísticas podem dar que pensar, mas não creio que se possa estabelecer aí qualquer nexo causal. Cães, gatos e outros seres que acolhemos na nossa intimidade, quando bem integrados, podem assumir-se como “guardiães de afetos”, capazes de induzir emoções fortes entre eles e nós e entre nós próprios. A crescente dedicação aos animais (e o reconhecimento dos seus direitos) é suscetível de diversas leituras, mas o assunto que aqui trago é mais uma partilha do foro pessoal do que uma ‘análise’.

A minha relação com os animais começou cedo, em pleno Alentejo. Num contexto em que cães, gatos, galinhas, patos e até porcos e ovelhas corriam ou pastavam livremente pelos campos. Nesse tempo, os direitos dos animais apenas dependiam da sensibilidade dos seus donos, e as crianças cresciam e brincavam em plena liberdade pelas ruas da aldeia, no meio da natureza junto dos animais, que eram, aliás, uma peça central nesse universo. Os cães, em especial, preenchiam uma boa parte do nosso sentido de segurança. Ao rever uma foto de quando tinha cerca de seis anos de idade, com um pequeno cachorro ao colo, recordo muitos momentos de grande alegria e ternura inocente e por segundos voltei a sentir aquele cheiro do bafo quente, típico dos cãezinhos ainda a darem os primeiros passos: “bafo de cão, come-se com pão...”, dizia-se.

Redescobri recentemente essa capacidade dos animais (no caso, uma cadela) de despertarem em nós os sentimentos mais simples e genuínos. Eles ajudam-nos a viver, e a viver com os outros. Em pouco mais de um mês esta criatura levou-me ao contacto com um maior número de vizinhos do que nas várias décadas em que resido neste bairro, de Coimbra. Não se trata de uma descoberta mas pude confirmar que, tal como nos humanos, também entre os cães existem diferenças de ‘carácter’ abissais, ainda que pertençam à mesma raça. Os animais domésticos representam não só uma compensação para os afetos recalcados em nós, mas são também um fator sentimental insubstituível na relação com os outros e com a natureza. Com grande naturalidade levam-nos ao nosso próximo (mas que permanecia distante), ao vizinho do lado ou àqueles que, embora fazendo parte da mesma comunidade, dificilmente chegariam mais perto do que a distância de um bom dia.

Foi o que aconteceu com a ‘Eva’, que se tornou — embora temporariamente — o centro das atenções da família. Deixem-me descreve-la, primeiro o lado físico, depois o seu ‘perfil’ particular. À primeira vista, dir-se-ia que é um bicho algo feioso, cabeça grande, focinho achatado, orelhas espetadas e excessivamente grandes para o seu tamanho. Com a testa alta, olhos laterais e nariz atrofiado, a boca parece enorme e, quando aberta, de dentes irregulares, mais parece um pequeno hipopótamo. É um pequeno bulldog francês, cujas características, inteligência e hábitos comportamentais na relação com os cuidadores nos conquistou em definitivo. Quer pela inteligência e versatilidade dos seus “estados de alma”, quer sobretudo pelo afeto e cumplicidade. Ela demonstrou-nos o potencial de humanidade que pode haver num pequeno cão (aliás, numa cadela, porque o respeito que agora lhe dedico não admite confusões). Só a posteriori me apercebi de que talvez a razão de tão intenso “encontro” se deva a ter-me transportado até às sensações vividas na infância, em convívio com outras famílias e gerações do mundo canino.

Existem evidentemente imensas ‘personalidades’ de cachorros. Nos comportamentos, há os que ladram, ganem, arranham o mobiliário ou fazem as necessidades fisiológicas nos sítios menos apropriados. Há os que dormem a maior parte do tempo, há os que se tornam perigosos e violentos para estranhos (ou até para os donos) e para outros animais. A ‘Eva’ mostrou neste curto período ser diferente de tudo isso. Boa parte do dia pode passá-lo a dormir. Em geral ressona. Como os canais respiratórios são demasiado finos, por vezes funga e espirra como um pequeno ser humano. Se a deixarmos, prefere o sofá do que a sua própria cama. Precisa sempre de sentir a presença humana, em casa ou na rua. Muito atenta, em particular à hora das refeições, aguardando por uma boa côdea, de preferência estaladiça. Sentada no chão, fita-nos persistentemente e quando ganha confiança empoleira-se nas pernas, lambe o seu narizinho encolhido, abana-se e agita-se ansiosa por mais uma migalha. Treinada é capaz de permanecer em pé por largos minutos ou dar a pata, à espera da recompensa alimentar.

Depois, sobretudo após a refeição ou no regresso de mais um passeio, é a hora do recreio; desafia-nos e provoca-nos, corre a buscar brinquedos vários; é capaz de destruir uma garrafa de água de plástico até lhe arrancar a tampa e diverte-se com o ruído dos dentes no plástico rijo. Não morde e raramente ladra. Quando o faz é em “voz grossa”, por exemplo quando é surpreendida com um som estranho e acorda de repente, se sente um movimento repentino no elevador ou na porta do lado; mima-nos o tempo todo e adora carícias em especial na barriga; deixa-se vestir como se fosse um bebé passivo, deita-se no chão e põe-se de patas para o ar para se vestir ou para limpar as patinhas; pode ficar muito tempo imóvel nessa posição, a dormir ou acordada. Em dias de sol de inverno, adora ficar estendida a apanhar sol e a espreguiçar-se... Mesmo a dormir parece estar atenta aos movimentos, e se alguém se prepara para sair de casa, logo salta do seu estado de letargia. Então, desata aos pulos, rodopia sobre si própria de contentamento e corre até à porta, na expectativa de mais um passeio ao ar livre.

Na rua, caminha rapidamente, como um pequeno porquinho, gingona a subir escadas, corre uns trinta metros à frente e depois pára à minha espera, de orelhas em riste. Corre ou caminha apressada, respirando ofegante, língua de fora naquela bocarra de orelha a orelha. Nos últimos tempos já andava sem trela, mas obedecia à voz de comando. A busca de novidade e a infinita curiosidade manifesta-se na multiplicidade de alvos que a estimulam, seja pelos odores ou restos de comida — um autêntico aspirador de quatro patas —, seja do movimento, nunca se sentindo inibida na aproximação até zonas de intimidade que muitas vezes terminam em sucessivas lambidelas na cara, nas orelhas ou no pescoço da pessoa. Se for pessoa, mesmo estranha, porque para ela não há estranhos, apenas gente que lhe dedica atenção. Com os outros cães mostra-se seletiva. Pode interagir e brincar à-vontade ou esquivar-se a abordagens demasiado ousadas como seja, por exemplo, a de um focinho estranho junto às partes íntimas. Não sei com que critérios, mas pude confirmar que não é dada a preconceitos raciais. Tudo depende da empatia e talvez do sentido estético, do sexo ou dos cheiros de cada um. Outros cães ladram, eriçam-se e são agressivos, enquanto a nossa ‘Eva’ olha-os de frente, focinho a focinho, sem se deixar intimidar, de peito feito, mas condescendente perante tanto alarido.

Os espaços abertos deixam-na particularmente alegre e ativa. Cansa-se, espuma e baba-se toda depois da caminhada, mas sempre mantém a postura de uma sentinela alerta. Mesmo sem trela, fica à porta do café ou do minimercado, aguardando a volta do dono, sem reclamar. Na praia deserta, revelou-se na sua suprema liberdade, uma folha esvoaçante mas com a força e o estilo de um mini-touro. Recupero o registo poético de Manuel Alegre porque foi isso que senti nas corridas que fizemos há poucos dias nas areias molhadas e desertas da Costa Vicentina: “Podes correr comigo pela praia fora, aqui ninguém nos vê, somos só nós e o mar, saltas a meu lado como se fosses um pedaço de areia e vento...” (Cão Como Nós, p.67). 


 
 
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Elísio Estanque



 
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