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25-02-2018        Jornal de Notícias

No filme "Eu, Daniel Blake", de Dave Johns, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes em 2016, Daniel depara-se com uma imensidão de portas fechadas, após lhe ter sido diagnosticado um grave problema de coração que o coloca, aos 59 anos de idade, entre a possibilidade de aceder ao subsídio de desemprego face a hipotético retorno ao trabalho, a passagem à reforma, ou o acesso a uma pensão de invalidez. O seu processo evidencia contradições no funcionamento do Sistema de Segurança Social e na prestação de direitos sociais fundamentais, desde logo na área da saúde: é que o ser humano trabalhador e o cidadão só têm um corpo.

Daniel vive como todos nós este tempo de computadorização de relações, de diálogo com máquinas que respondem a telefonemas e a outros contactos, de sermos atendidos por trabalhadores a quem é imposto que se comportem como máquinas na relação com as pessoas. Isso torna-lhe a vida num inferno.

Daniel é um cidadão arreigado ao pressuposto de que vivemos em democracia e de que o Estado tem a obrigação de tratar todas as pessoas com dignidade, garantindo-lhes acesso aos seus direitos. Mas esse Estado esfuma-se por detrás da "eficiência" da gestão privada que contratualizou e de procedimentos administrativos subvertidos.

Nas suas deambulações para encontrar uma resposta coerente, Daniel relaciona-se com outras pessoas (de várias gerações) que também andam atormentadas pela desumanização hoje latente. Por generosidade, aproxima-se da jovem mãe Katie, recentemente "deslocada" e com dois filhos ainda crianças, que é forçada a beber o fel de algumas marginalidades ao mesmo tempo que recorre ao banco alimentar para sobrevivência da família. Daniel, que não percebe de computadores, possui contudo múltiplos saberes úteis e propiciadores de felicidade a quem com ele se relaciona. Ele é capaz de ser solidário e sabe bem lidar com sentimentos e valores humanos, alertando cada um de nós para desafios que precisamos de vencer, por forma a darmos vida à esperança e construirmos um futuro melhor.

A convite do clube de leitura da Universidade Fernando Pessoa, no Porto, revi o filme para, a partir dele, desenvolver algumas reflexões e diálogo com professores e alunos, exercício que propiciou a exposição de múltiplas questões, nomeadamente as que aqui deixo.

Em defesa da cidadania e da melhoria da sua densidade, não podemos permitir que as pessoas sejam meros elementos de processos de cálculo (algoritmos), ou clientes de empresas a quem o Estado, erradamente, entrega a prestação de direitos fundamentais. Os detentores dos direitos são as pessoas concretas e não quem as atende quando estas têm necessidade de os reclamar, muito menos os acionistas das empresas que fazem da sua prestação um negócio.

Para que o Estado moderno e a Democracia sobrevivam, as normas do Direito Administrativo consagradas numa Constituição democrática não podem ser subvertidas. O Direito do Trabalho tem de sobreviver e não podemos permitir que os seres humanos sejam encurralados em becos sem saída e responsabilizados pelos seus fracassos. Não haverá democracia com o social esmagado. Pelo menos nas décadas próximas, os sistemas públicos, universais e solidários da Segurança Social têm de ser defendidos e melhorados, pois as alternativas até agora ensaiadas são desastrosas.

A possibilidade de termos vidas mais longas e com saúde significa que podemos ter de ir fazer mais "reparações" do que se fazia antes, mas isso não pode escorraçar-nos da vida ativa. Os direitos associados ao trabalho merecem reajustamentos para que não se atrofie a vida de muitas pessoas quando têm de tratar da sua saúde.

O individualismo exacerbado que vivemos está a destruir a força gregária que as instituições - desde a família ao Estado - e as organizações coletivas propiciam à sociedade e são base da sua sustentação. Há que fazer recomposições e descobrir novas formas de estruturação e afirmação dos coletivos.

As crianças e os jovens precisam de aprender a lidar com as novas e as velhas tecnologias, de aprender a não serem peças descartáveis no trabalho. Há que formar seres humanos plenos, conscientes do direito a serem felizes e da obrigação de contribuir para a felicidade dos outros.


 
 
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Manuel Carvalho da Silva



 
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