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21-06-2006        Diário Económico
O que está em causa é a questão de saber se, ou em que condições, aceitamos ceder a nossa privacidade a troco de mais segurança.

"Descalça vai para a fonte, Leonor pela verdura. Vai formosa e não segura"… A intranquilidade da figura da redondilha de Camões sugere-me a condição em que, não obstante a nossa generalizada distracção, nos encontramos perante acontecimentos passíveis de transformar profundamente a sociedade em que vivemos. Vem isto a propósito, por estranho que pareça, do lançamento, por iniciativa da União Europeia, do bilhete de identidade e passaporte electrónicos.

A notícia chega-nos pelos jornais. Em 18 de Abril passado, o "Diário de Notícias" informava que "o velho passaporte tem os seus dias contados" e que conhecidos criadores portugueses vão transformá-lo num objecto de elevada qualidade artística. E, acrescentava: "Os dados biométricos e uma série de inovações tecnológicas irão torná-lo num documento muito mais seguro". Num registo semelhante, o "Diário Económico" de 5 de Maio anunciava que a biometria para efeito do controlo de entradas e saídas na União Europeia irá prevenir "o furto de identidade e a fraude de documentos", reforçando as defesas da Europa contra a imigração ilegal e o terrorismo. Os novos cartões e passaportes associarão as características biológicas que melhor permitem diferenciar os indivíduos entre si (a íris do olho e a imagem facial, além da impressão digital) aos dados nominativos (nome, morada, etc.) para fins de identificação do seu titular.

É, desde logo, surpreendente a forma como medidas destas são apresentadas aos cidadãos: como um sinal de progresso tecnológico, uma condição indispensável da segurança dos cidadãos, um ‘gadget" de grande utilidade na vida quotidiana. Sublinham-se as vantagens. Mas eclipsam-se os limites: o risco de fraudes; as deficiências de funcionamento dos dispositivos de identificação; e o perigo da sua utilização abusiva para fins diferentes dos que presidiram à recolha dos dados.

Os governos garantem que a protecção de dados pessoais está salvaguardada. Mas terão as autoridades reguladoras a capacidade de controlar os usos e os abusos destas tecnologias? Se esta evolução realça o papel de entidades como a Comissão Nacional de Protecção de Dados, ela evidencia, em contrapartida, a insuficiência dos meios de que dispõem para exercer um controlo efectivo daqueles sistemas.

Importa não subestimar o facto de a iniciativa europeia ter resultado de exigência dos Estados Unidos da América, no âmbito da sua luta contra o terrorismo e de ela acontecer quando, nos EUA como na Europa, se multiplicam as legislações que alargam os poderes de acesso das autoridades – entenda-se, antes de mais, as polícias – a bases de dados pessoais (cite-se, por exemplo, a Directiva europeia 2006/24/CE relativa à retenção de dados de tráfego das redes públicas de comunicações). Acresce que a introdução da biometria para fins de identificação pessoal e controlo da circulação dos indivíduos coincide com a explosão dos métodos análogos aplicados nas empresas, nas escolas e da videovigilância em espaços públicos e comerciais.

Em consequência da biometria de massa, corremos o risco de ver edificado um sistema dotado do atributo (mas não era apenas divino?) de "ver sem ser visto". Não haverá razões para temermos pelo presente e futuro dos direitos e liberdades fundamentais? Não haverá motivos para nos sentirmos "não seguros"?

Como mostrou, de forma dramática, a história do século XX, o Estado de Direito não é uma conquista irreversível. Se é inegável a legitimidade da sociedade de se defender contra ameaças à segurança, já é duvidoso que a introdução de verdadeiras "tecnologias de vigilância" como a biometria se realize de modo precipitado e num clima carregado de emoção (como se se tratasse de uma "guerra" ou de uma aventura…).

Em Portugal, não foi anunciado qualquer debate público sobre aquela medida (ao contrário do que aconteceu, por exemplo, em França, no âmbito do "Fórum des droits sur l"Internet"). Tanto quanto sabemos, o governo limitou-se a pedir o competente parecer à Comissão Nacional de Protecção de Dados. Mas isso não parece bastante quando o que está em causa é a questão fundamental de saber se, ou em que condições, aceitamos ceder a nossa privacidade e até a nossa intimidade a troco de mais segurança.