Datas redondas são sempre bons pretextos para celebrar ou repensar as grandes efemérides. Já se sabe que as celebrações oficiais de atos fundacionais, batalhas ou revoluções — com maiores ou menores aparatos e desfiles militares — tendem a exprimir as roupagens coloridas, e ritualizadas, de que as instituições do Estado se autoalimentam. Nem precisamos de lembrar as demonstrações de poderio (real ou aparente, mas sempre ostentatório) que fazem parte do código genético de regimes políticos (autoritários ou democráticos) das mais diversas matizes. Uma revolução assim celebrada, seja ela a de Outubro ou a do nosso 25 de Abril, por exemplo, torna-se um cliché, uma pintura naive emoldurada para adornar as paredes cinzentas do establishment.
É assim que, para lá da controvérsia que se gerou em 2017 com as leituras contrastantes da Revolução bolchevique, é importante libertar a análise dos múltiplos preconceitos e referenciais ideológicos que rodeiam o tema (e enviesam a busca de objetividade que deve guiar a historiografia). O regresso analítico ao background histórico da Revolução de Outubro, incluindo os seus antecedentes e consequências, exige, portanto, um esforço epistemológico de revisitação do próprio background concetual da noção de “revolução” (aspeto que tratarei num próximo artigo). Como bem sabemos, a importância da Revolução soviética — ontem e hoje — está para além dos próprios acontecimentos. A prová-lo estão as profundas mudanças sociais ocorridas nas sociedades ocidentais ao longo do século XX suscetíveis de ser associadas, direta ou indiretamente, ao triunfo dos bolcheviques e ao movimento comunista.
É verdade que o capitalismo neoliberal tem vindo, nas últimas décadas, a colonizar as instituições democráticas, corroendo-lhes o seu potencial reformador e minando a própria democracia. Mas o capitalismo enquanto sistema socioeconómico metamorfoseou-se profundamente desde 1917, tornou-se mais difuso, adaptável e sobretudo incorporou-se em muitas esferas da sociedade e nos hábitos de vida e de consumo das populações: dos ricos, dos pobres e das classes médias. Em especial na era da globalização, os campos económico, educacional, tecnológico, comunicacional, etc., sofreram profundas transformações. Seguramente mais profundas, pelo menos quanto ao seu contributo para o progresso da humanidade, do que as desencadeadas na Rússia em 1917 sob a liderança de V. I. Lenine. Há quem advogue que tais mudanças se ficaram a dever ao poder dissuasor ou inspirador da “Revolução”, mas ignora-se que o capitalismo se “metamorfoseou” e com o “compromisso histórico” no pós-guerra se abriu espaço ao Estado providência, que consagrou conquistas sociais e políticas infinitamente mais sólidas e avançadas do que o modelo da ex-URSS. Reconhecer os dotes revolucionários de líderes como L. Trotsky e V. I. Lenine não pode inibir-nos de denunciar os efeitos desumanos dos jogos de poder e das decisões que protagonizaram, nomeadamente a propósito da “questão camponesa”.
Das contradições, conflitos internos, traições, lutas fratricidas, etc., ocorridas nos primeiros anos da Revolução (1917-1923) só algumas décadas depois se foi tomando conhecimento no Ocidente. Mas do mesmo modo que a implosão do campo soviético não se explica com base em teorias da conspiração, é inegável que Estaline não caiu do céu nem foi um mero “desvio” acidental. Parece inquestionável a relação entre a “revolução real” e o que se pode chamar “a pintura da revolução”, isto é, a aura lendária de que se revestiu posteriormente. Numa primeira fase, aspetos como a força inicial do marxismo-leninismo a apontar o caminho do socialismo (como alternativa ao capitalismo selvagem), o advento do fascismo na Europa ocidental, os limites e perversões da democracia representativa, o crescimento do movimento comunista internacional, etc., ajudaram a construir o mito. E mais tarde, já na vigência do estalinismo, o papel do exército vermelho na derrota do nazismo contribuiu igualmente para a glorificação do modelo, sob a liderança do “pai dos povos” (Estaline), então erigido em herói. O cenário de guerra-fria, por seu lado, apesar do clima dissuasor ter ajudado a estimular muitos movimentos sociais e importantes reformas políticas nas democracias ocidentais, também fortaleceu a “cortina de ferro” entre o Leste e o Oeste.
Mas foi principalmente a partir dos anos cinquenta, com a difusão de testemunhos dramáticos de dissidentes como V. Kravchenko e A. Soljenitsyne e outros acontecimentos entre os quais as invasões da Hungria e da Checoslováquia pelos tanques soviéticos, o conflito com a China e o florescimento de grupos maoistas nos anos sessenta, o movimento solidariedade na Polónia (prenúncio da Perestroika e da queda do muro de Berlim), fenómenos que contribuíram para denunciar a natureza daquele regime. Só então se revelou plenamente, e a todo o mundo, o lado mais trágico do “socialismo real” e as perversões da “Revolução proletária” de 1917. Até essa altura, o campo soviético e o simbolismo da revolução ou permaneceram envoltos numa aura de redenção messiânica (sobretudo entre a intelectualidade de esquerda, mas também nos meios operários e sindicais do mundo ocidental) ou, em contrapartida, foram diabolizados pelos setores mais conservadores e anticomunistas do mundo ocidental. É inquestionável a influência da Revolução de Outubro e o seu poder de sedução. Há todo um conjunto de pulsões vertiginosas que mobilizaram as classes trabalhadoras à escala internacional, abrindo espaço a muitos momentos libertários e emancipatórios, intensamente vividos por milhões de seres humanos. Mas ao mesmo tempo na URSS construía-se um regime implacável para outros milhões de cidadãos, que foram espiados, perseguidos, torturados, assassinados e enterrados na vala comum do regime do Gulag, em nome do “socialismo”.
Não é aceitável que se confunda a crítica ao regime soviético e às trágicas evoluções geradas a partir da tomada do Palácio de Inverno com uma qualquer atitude “revolucionário-fóbica” (ou “reacionária”, “pró-americana”, etc.), como em geral se pretende fazer crer em alguns meios da esquerda portuguesa, aqueles que ainda não se libertaram do facciosismo nessa matéria. Vale a pena por isso insistir em separar as águas e recentrar a discussão. Nenhuma abordagem pode ajudar ao esclarecimento público se persistir no registo maniqueísta, e creio que as controvérsias que recentemente perpassaram no debate público em Portugal refletiram essa distorção. Talvez o facto de sermos um país onde o legado do catolicismo conservador se conjuga com um legado ainda significativo da ortodoxia comunista — qualquer deles veiculando uma moral fundada em velhas dicotomias simplistas, como a oposição entre o bem e o mal, entre o céu e o inferno ou entre revolucionários e reacionários — ajude a explicar a dificuldade em reconhecer que o totalitarismo soviético não foi apenas fruto da “deriva estalinista”, antes já estava inscrito na própria natureza centralista, burocrática e autoritária de um sistema que rapidamente se tornou um viveiro de “apparatchiks”. Pergunta-se: teria mesmo de ser assim?... E fará ainda sentido desligar o “regime bárbaro” em que se tornou a URSS das premissas ideológicas, disputas de poder e prática política da “vanguarda revolucionária” que esteve na sua génese?