08-11-2006 Diário Económico
Onde se inscreve a fronteira entre a ciência e a política? Quem deve responder pelas medidas tomadas ou pelas reformas empreendidas?
É cada vez mais comum em Portugal o recurso pelos governos a estudos encomendados a universidades, comissões técnicas ou outras entidades com o fim de fundamentar políticas, planos, programas ou projectos. Muitas das mudanças na organização e funcionamento de infra-estruturas e serviços públicos anunciadas nos últimos tempos têm sido efectivamente acompanhadas pela invocação de estudos de natureza técnica: da Saúde (a relocalização das maternidades e urgências hospitalares) à justiça (a reforma do mapa judiciário) passando pelas obras públicas (a introdução de portagens nas SCUTs). Noutras áreas de política pública, como é o caso da política de ambiente, que dependem fortemente do conhecimento científico, a consulta de especialistas tem vindo mesmo a ser institucionalizada: por exemplo, no quadro do procedimento de licenciamento de grandes obras ou actividades industriais, onde se impõe a realização de estudos prévios de impacte ambiental. tender
É inquestionável a relevância desta aproximação entre políticos e cientistas, tanto mais que contraria uma longa tradição de insensibilidade (ou seria receio?) das autoridades portuguesas relativamente ao papel da ciência na sustentação da decisão política. Expressão paradigmática desse afastamento foi o lamento de Sousa da Câmara, proferido em 1946, a propósito das opções de política agrícola da época: "Nenhuns estudos sólidos se fizeram", escreveu; "o que houve foi a facilidade de discorrer sobre coisas mal conhecidas, … a crença de que as coisas em agricultura se podiam resolver sem recurso à ciência".
Mas hoje, paradoxalmente, parece pender-se para o extremo oposto. Não raro, o discurso dos governantes exalta o papel dos cientistas a ponto de os autores dos estudos técnicos surgirem, ocasionalmente, configurados aos olhos da opinião pública como "responsáveis" pelas opções políticas. Recorde-se o caso da Comissão Científica Independente à qual o Governo incumbiu, em 1999, a avaliação dos impactes da co-incineração de resíduos industriais perigosos. Foi sobre os seus membros que acabaram por recair muitas das críticas à selecção dos locais destinados a instalar as co-incineradoras. Também há poucas semanas, a propósito da reorganização dos serviços de Saúde, houve quem protestasse contra a sua alegada delegação em "tecnocratas"…
Por detrás desta aparente confusão de papéis parece estar, antes de mais, a propensão de alguns governos (aqui como em muitos outros países…) para exibirem como "técnicas" questões que são na essência "políticas" porque se prendem com interesses e valores de ordem social, económica, ética, etc. Estará, além disso, uma ideia ultrapassada de Ciência como produtora de verdades absolutas sobre as coisas.
É por isso natural que o cidadão comum se interrogue: onde se inscreve então a fronteira entre a ciência e a política? Serão as matérias em questão redutíveis a apreciações de natureza técnica? Quem deve afinal responder pelas medidas tomadas ou pelas reformas empreendidas?
Há que reconhecer que quando o cientista deixa os limites do laboratório e é chamado a participar na concepção ou avaliação de projectos de interesse geral, a sua tarefa dificilmente pode ser indiferente aos contextos e está sujeita a maiores constrangimentos de informação, de prova, de tempo. Mas, se é verdade que as fronteiras tradicionais entre a ciência e a política se atenuam por força, quer da "cientificação" da política, quer da "politização" da ciência, isso não significa que não seja indispensável demarcar as funções e as responsabilidades de cientistas e de políticos, bem como definir com clareza os princípios que devem balizar o recurso ao parecer científico pelo poder político. A independência dos peritos e a transparência dos procedimentos de consulta constituem garantias fundamentais destes processos. Sobretudo, o apelo aos peritos não deve servir de pretexto para excluir o envolvimento dos cidadãos, grupos profissionais ou populações afectadas.
É que as "boas" decisões são as que se cimentam não só numa fundamentação científica sólida, mas também na auscultação das pessoas. Como a experiência não se cansa de mostrar, é desta que depende, afinal de contas, a sua aceitação social.