Estamos num interregno. O mundo que o neoliberalismo criou em 1989 com a queda do Muro de Berlim terminou com a primeira fase da crise financeira (2008-2011) e ainda não se definiu o novo mundo que se lhe vai seguir. O mundo pós-1989 teve duas agendas com um impacto decisivo um pouco em todo o mundo. A agenda explícita foi o fim definitivo do socialismo enquanto sistema social, económico e político liderado pelo Estado. A agenda implícita consistiu no fim de qualquer sistema social, económico e político liderado pelo Estado. Esta agenda implícita foi muito mais importante que a explícita, porque o socialismo de Estado estava já agonizante e, desde 1978, procurava reconstruir-se na China enquanto capitalismo de Estado no seguimento das reformas promovidas por Deng Xiaoping. O efeito mais directo do fim do socialismo de tipo soviético na esquerda foi o ter desarmado momentaneamente os partidos comunistas, alguns deles há muito já distanciados da experiência soviética. A agenda implícita foi a que verdadeiramente contou; por isso, teve que ocorrer de maneira silenciosa e insidiosa, sem queda de muros. Assistiu-se, depois de 1989, à difusão sem precedentes da ideia da crise da social-democracia, que implicava uma forte intervenção do Estado na concessão de direitos sociais e económicos. A secundá-la, a ortodoxia neoliberal doutrinava sobre o carácter predador ou, pelo menos, ineficiente do Estado e da regulação estatal.
O desarme da social democracia foi disfarçado durante algum tempo pela nova articulação das formas de dominação que vigoram no mundo desde o século XVII: capitalismo, colonialismo e patriarcado. As reivindicações sociais passaram a orientar-se para as agendas ditas pós-materiais, os direitos culturais ou de quarta geração. Estas reivindicações eram genuínas e denunciavam modos de opressão e de discriminação repugnantes. Incidiam especificamente em dois eixos da dominação, o colonialismo (racismo, monoculturalismo) e o patriarcado (sexismo e hetero-sexismo). O modo como as reivindicações foram orientadas fez crer aos agentes políticos que as mobilizaram (movimentos sociais, ONGs, velhos e novos partidos) que as podiam levar a cabo com êxito sem tocar no terceiro eixo da dominação – o capitalismo. Houve mesmo uma negligência do que se foi chamando política de classe (igualdade, distribuição) em favor das políticas de raça e sexo (reconhecimento da diferença). Essa convicção provou-se fatal no momento em que o regime pós-1989 caiu. A dominação capitalista, reforçada pela legitimidade que criou nestes anos, virou-se facilmente contras as conquistas anti-racistas e anti-sexistas na busca incessante de maior acumulação e exploração. E estas, desprovidas da vontade anti-capitalista ou separadas das lutas anti-capitalistas, estão a sentir muitas dificuldades para resistir.
Nestes anos de interregno resulta evidente que a agenda implícita visava dar total prioridade ao princípio do mercado na regulação das sociedades modernas em detrimento do princípio do Estado e da comunidade. No início do século XX o princípio da comunidade fora secundarizado em favor da rivalidade que então se instalou entre os princípios do Estado e do mercado. A relação entre ambos foi sempre muito tensa e contraditória. A social-democracia e os direitos económicos e sociais significaram momentos de trégua nos conflitos mais agudos entre os dois princípios. Esses conflitos não eram resultado de meras oposições teóricas. Resultavam das lutas sociais das classes trabalhadoras que procuravam encontrar no Estado o refúgio mínimo contra as desigualdades e os despotismos gerados pelo princípio de mercado. A partir de 1989, o neoliberalismo encontrou o clima político adequado para impor o princípio do mercado, contrapondo a sua lógica à lógica do princípio do Estado, entretanto colocado à defesa.
A globalização neoliberal, a desregulação, a privatização, os tratados de livre comércio, o papel inflacionado do Banco Mundial e do FMI foram sendo executadas paulatinamente para erodir o princípio do Estado, quer retirando-o da regulação social, quer convertendo esta numa outra forma de regulação mercantil. Para isso, foi necessária uma desvirtuação radical mas silenciosa da democracia. Esta, que no melhor dos casos fora encarregada de gerir as tensões entre o princípio do Estado e o princípio do mercado, passou a ser usada para legitimar a superioridade do princípio do mercado e, no processo, transformar-se ela própria num mercado (corrupção endémica, lobbies, financiamento de partidos, etc.). O objectivo era que o Estado passasse de Estado capitalista-com-contradições a Estado capitalista-sem-contradições. As contradições passariam a ser exteriorizadas para a sociedade, e as crises sociais a serem resolvidas como questões de polícia e não como questões políticas.
Vivemos, pois, um período de interregno. Não sei se este interregno gera fenómenos mórbidos como o interregno famosamente analisado por Gramsci. Mas tem certamente assumido características profundamente dissonantes entre si. Nos últimos cinco ou dez anos, a actividade política em diferentes países e regiões do mundo adquiriu facetas e traduziu-se em manifestações surpreendentes ou desconcertantes. Eis uma selecção possível: o agravamento sem precedentes da desigualdade social e a passagem da riqueza envergonhada para a riqueza ostentada; a intensificação da dominação capitalista (erosão dos direitos socias), colonialista (intensificação do racismo, xenofobia, islamofobia, anti-semitismo) e patriarcal (sexismo, feminicídio) traduzida no que chamo fascismo social em suas diferentes formas (fascismo do apartheid social, fascismo contratual, fascismo territorial, fascismo financeiro, fascismo da insegurança); a reemergência do colonialismo interno na Europa com um país dominante, a Alemanha, a aproveitar-se da crise financeira para transformar os países do sul numa espécie de protectorado informal, particularmente gritante no caso da Grécia; o golpe judiciário-parlamentar contra a Presidente Dilma Rousseff, um golpe continuado com o processo de impedimento da candidatura de Lula da Silva às eleições presidenciais de 2018; a saída unilateral do Reino Unido da União Europeia; o fim presumível do conflito armado na Colômbia; o colapso ou crise grave do bipartidismo centrista em vários países, da França à Espanha, da Itália à Alemanha; a emergência de partidos de tipo novo a partir de movimentos sociais ou mobilizações anti-política, como o Podemos na Espanha, Cinco Stelle na Itália, AAP na Índia, Alternative für Deutschland na Alemanha; a constituição de um governo de esquerda muito moderada em Portugal com base num entendimento sem precedentes entre diferentes partidos de esquerda; a eleição presidencial de homens de negócios bilionários com fraca ou nula experiência política, apostados em destruir a protecção social que os Estados têm garantido às classes sociais mais vulneráveis, sejam eles Macri na Argentina ou Trump nos EUA; o ressurgimento da extrema-direita na Europa com o seu tradicional nacionalismo de direita, mas surpreendentemente portadora da agenda das políticas sociais que tinham sido abandonadas pela social-democracia, com a ressalva de agora valerem apenas para “nós” e não para “eles” (imigrantes, refugiados); a infiltração de comportamentos fascizantes em governos democraticamente eleitos, como, por exemplo, na Índia do BJP e do presidente Modi, nas Filipinas de Duterte, nos EUA de Trump, na Polónia de Kaczynski, na Hungria de Orban, na Rússia de Putin, na Turquia de Erdogan, no México de Peña Nieto; a intensificação do terrorismo jihadista que se proclama como islâmico; a maior visibilidade de manifestações de identidade nacional, de povos sem Estado, nacionalismos de direita na Suíça, e na Áustria, nacionalismos com fortes componentes de esquerda na Espanha (Catalunha mas também País Basco, Galiza e Andaluzia) e na Nova Zelândia, e nacionalismos dos povos indígenas das Américas que se recusam a ser encaixados na dicotomia esquerda/direita; a agressividade sem paralelo na gravidade e na impunidade da ocupação da Palestina pelo Estado colonial de Israel; as profundas transformações internas combinadas com estabilidade (pelo menos aparente) em países que durante muito tempo simbolizaram as mais avançadas conquistas das políticas de esquerda, da China ao Vietname e a Cuba; o colapso por uma combinação de erros próprios e interferência grave do imperialismo norte-americano de governos progressistas que procuraram combinar desenvolvimento capitalista com a melhoria do nível de vida das classes populares, no Brasil, Argentina e Venezuela; o novo rosto e a nova táctica do imperialismo norte-americano que, em vez de impor ditaduras por via da CIA e forças militares, promove e financia iniciativas de “democracia-amiga-do mercado” através de organizações não-governamentais libertárias e evangélicas e de desenvolvimento local, protestos com slogans ofensivos para as personalidades, os princípios e as políticas de esquerda, protestos na medida do possível pacíficos, mas que, em situações mais tensas, pode envolver acções violentas que depois, com a cumplicidade dos media nacionais e internacionais, são atribuídas aos governos hostis, isto é, governos hostis aos interesses norte-americanos.
Este elenco deixa de fora os problemas sociais, económicos e ecológicos que talvez mais preocupem os democratas em todo o mundo, tal como não menciona a violência familiar, urbana, rural ou a proliferação das guerras não-declaradas, embargos não declarados, o terrorismo e o terrorismo de Estado que estão a destruir povos inteiros (Palestina, Líbia, Síria, Afeganistão, Iémen) e a convivência pacífica em geral. Neste sentido, este elenco é um elenco de sintomas e não de causas. Mesmo assim, serve-me para mostrar as características principais do interregno em que nos encontramos: a democracia liberal nunca teve capacidade para se defender dos anti-democratas e fascistas com os mais diversos disfarces; mas hoje o que mais surpreende não é essa incapacidade; são antes os processos de incapacitação movidos por uma força transnacional altamente poderosa e intrinsecamente antidemocrática – o neoliberalismo (capitalismo como civilização de mercado, de concentração e de ostentação da riqueza), cada vez mais geminado com o predomínio do capital financeiro global, a que tenho chamado o “fascismo financeiro”, e acompanhado por um cortejo impressionante de instituições transnacionais, lobistas e meios de comunicação social. Estes novos (de facto, velhos) inimigos da democracia não a querem substituir pela ditadura. Em vez disso, buscam descaracterizá-la ao ponto de ela se transformar na reprodutora mais dócil e na voz mais legitimadora dos seus interesses. Mas, como ilustra o elenco de sintomas, é um processo com muitas contradições.
O que virá depois deste interregno?