No musical Ópera do Malandro, composto por Chico Buarque nos anos 1970, Geni surge retratada como travesti, uma categoria dentro do espetro transgénero muito ancorada no contexto brasileiro. A letra da canção de grande sucesso descreve Geni como amante “de tudo que é nego torto”, declarando o seu corpo como sendo “dos errantes, dos cegos, dos retirantes, de quem não tem mais nada”. A cidade imaginária onde habita Geni não deixa por vozes alheias a manifestação do seu preconceito mais torpe (a que alguns porventura designariam por liberdade de expressão), gritando: Joga pedra na Geni! Joga pedra na Geni! Ela é feita pra apanhar, ela é boa de cuspir! Ela dá pra qualquer um. Maldita Geni!”
Foi numa manhã de Fevereiro, há 12 anos atrás, que a notícia chegou. Um grupo de crianças e jovens infligira maus tratos continuados a uma pessoa que pernoitava num prédio devoluto na cidade do Porto, tendo por fim empurrado o seu corpo já inanimado para o fundo de um poço onde foi encontrada morta. Aquela a quem as primeiras notícias trocaram o nome e o sexo era uma mulher transgénero. Foi graças à ação concertada de ativistas LGBT que o país passou a chamar Gisberta pelo nome que era o seu, aprendendo a reconhecê-la numa fotografia icónica que mostra uma mulher de rosto sereno, contemplativo, expectante. Nunca saberemos o que esperava Gisberta, de olhos postos num horizonte que a fotografia não permitiu abarcar.
Sublinhe-se, uma e outra vez, que Gisberta não morreu por ser transgénero; Gisberta foi morta por existir transfobia. Por outras palavras, Gisberta morreu porque há um preconceito sociocultural – resiliente, altivo e ignorante como todos os preconceitos. Transfóbico é um adjetivo que descreve pessoas para quem uma identidade ou uma expressão de género que não corresponde ao sexo atribuído à nascença é motivo para menorizar, patologizar ou reprimir, autorizando manifestações de violência verbal, física e simbólica. Trata-se de um preconceito inspirado pelo caldo patriarcal que remete para os campos do pecado e da doença tudo quanto escapa ao modelo estrito dos corpos domesticados e tranquilamente binários. Consequentemente, a transfobia traduz-se frequentemente em rejeição familiar, bullying escolar e precariedade laboral com grave impacto sobre o bem-estar e a qualidade de vida das pessoas.
A notícia da morte de Gisberta chegou como uma náusea, uma vergonha sem fim, a vergonha de a termos deixado morrer. A sua morte representa o nosso fracasso, individual e coletivo. Doze anos depois, o que mudou? Na esteira da indignação e do luto, alterações ao Código Penal em 2007 consideraram pela primeira vez os crimes de ódio com base na orientação sexual e o crime de violência doméstica passou a integrar a violência entre parceiros íntimos do mesmo sexo. Mas alterações mais profundas tardaram a surgir, algumas das quais incluídas na Lei de Identidade de Género em 2011. Na sequência do trabalho exemplar desenvolvido por Catarina Marcelino na qualidade de então Secretária de Estado da Igualdade e Cidadania, e do qual resultou a aprovação por parte do Governo da proposta de lei que estabelece o regime de identidade de género, em curso estão agora as atividades da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias visando alterações que dotem as pessoas transgénero de maior proteção e autonomia no processo de decisão. Doze anos depois da morte de Gisberta aguarda-se a todo o momento por sinais inequívocos de que os direitos das pessoas transgénero e não binárias não ficarão, mais uma vez, adiados.
Os recursos hoje disponíveis para o combate à transfobia deixam-nos cada vez menos desculpas para a nossa inoperância em situações de discriminação. A violência sobre pessoas transgénero e não-binárias é um tema recorrente nas histórias de vida recolhidas no âmbito do projeto INTIMATE, uma investigação de cinco anos financiada pelo European Research Council e a decorrer no Centro de Estudos Sociais. E só no ano de 2016, o Observatório da Discriminação em função da Orientação Sexual e da Identidade de Género registou quase duas centenas de ocorrências. Não é aceitável que a cidade imaginária que condenava, em gritos, Geni se replique no Portugal de agora.
Sabemos que a tão aclamada mudança de mentalidades não se opera apenas por decreto. Paralelamente ao processo de envolvimento e auscultação de pessoas transgénero e não binárias, é fundamental reconhecer a responsabilidade das universidades no processo de transformação. Os Estudos Transgénero, uma área científica com crescente consolidação noutros contextos geográficos, continuam remetidos para lugares disciplinares diversos (em especial a sociologia e a psicologia), tardando a sua expressão autónoma e consolidada na academia portuguesa. Disso mesmo dá conta um recente artigo publicado pela revistaCritical Social Policy, comparando as áreas de intervenção política e científica sobre a temática em Portugal e no Reino Unido, e que reconhece o défice de pessoas transgénero enquanto produtoras de conhecimento científico no contexto português.
Mais do que a morte, é a vida de Gisberta que nos interpela hoje a ser parte ativa do processo de transformação sociocultural que permitirá acolher a diversidade de género enquanto expressão bem-vinda da existência humana, rejeitando assim o guião da história única, binária, insuportavelmente impossível. Este é um desafio para cada um/a de nós, nos contextos em que nos movemos, e com a exigência de quem sabe que a dignidade humana não é negociável.