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26-01-2018        Público

Nas últimas semanas, o problema da cidade e da sua arquitetura tem vindo à praça pública, alimentando debates inflamados e dando origem a petições.  Por um lado, debate-se a limitação ao alojamento local como instrumento de defesa do cidadão. Por outro, questiona-se os critérios para a reutilização dos edifícios modernos. As razões que dão origem a estes dois temas são aparentemente díspares, mas têm uma matriz comum, a polarização da cidade em múltiplos centros.

A cidade europeia tem, de um modo geral, pelo menos dois mil anos de histórias urbanas que se desdobram entre a consolidação de um centro e a sua expansão para dar resposta ao crescimento da população. Esta população foi chegando às cidades fundamentalmente para  trabalhar ou estudar, abandonando áreas rurais ou outras áreas urbanas menos desenvolvidas.

A sobreposição de tecidos urbanos deu aos centros históricos uma identidade própria, em oposição às estruturas urbanas de carácter novo que as áreas de expansão adquiriram nos diversos momentos da sua construção, principalmente nos dois últimos séculos. Se, num primeiro momento, a expansão foi controlada com planos de urbanização, num segundo momento, ela foi atropelada pela rapidez com que as populações se deslocaram para as cidades. O crescimento das cidades após a Segunda Guerra Mundial e após a entrada na Comunidade Europeia foi exponencial pondo à prova todos os instrumentos de planeamento. Assim, o conceito de expansão, que pressupunha coerência urbana, foi substituído pelo conceito de periferia que abandonou qualquer modelo urbano. Contudo, paradoxalmente, a periferia absorveu também o centro tradicional, esvaziando-o, tornando-o marginal e degradado física e socialmente. Em Portugal, os centros das cidades chegaram ao fim do século XX com 50 % da sua população (Censos 2011).

Só no século XXI, os centros estão a inverter o processo de periferização a que foram sujeitos. Hoje, as cidades, nas suas diversas geografias, atravessam um momento particularmente interessante com a regeneração dos centros históricos para acolher turistas de todo o mundo que chegam todos os dias através dos fenómenos “low-cost”. Assistimos nos últimos anos, em nome do turismo de massas, à renovação do espaço público, à introdução de linhas de metro ligeiro, à recuperação dos monumentos nacionais, à reabilitação dos edifícios de habitação tipo “airbnb” e de comércio tipo franchising. A cidade democratizou-se e o acesso ao lazer e à cultura é hoje um direito consolidado.

Esta euforia em que vivem hoje os centros históricos das cidades grandes, médias e pequenas tem naturalmente um reverso. Por um lado, os seus cidadãos não recuperaram o direito e o prazer de habitar no centro da cidade, que continuou a perder cerca de 40 % da população entre 2000 e 2011. De facto, a cidade é agora habitada temporariamente por cidadãos internacionais, que a usam sem deixar marcas da sua passagem, consumindo os produtos reinventados para o turismo de massas. Esta situação levou, nos últimos tempos, os governos e os municípios a propor a regulação do alojamento local, como forma de travar este processo de desertificação. Por outro lado, a cidade foi criando múltiplos centros para acolher as mais diversas funções que abandonaram os centros históricos. Os centros habitacionais, comerciais, educacionais, terciários ou industriais que proliferam pelas periferias imensas das nossas cidades e que apenas conhecemos no percurso do metro ou do “uber” que nos levam do aeroporto ao centro histórico.

Correndo o risco de generalizar, muitos destes novos centros são hoje áreas cinzentas, fortemente urbanizadas, com graves problemas sociais, que funcionam como ilhas isoladas pelos nós viários, ainda que possam estar aparentemente perto dos antigos centros. Acolhem não os turistas, mas os habitantes locais distribuídos por bairros de classe alta, média e baixa e os imigrantes (trabalhadores, reformados e estudantes) que foram chegando em fuga do interior desertificado, dos conflitos do médio oriente, do sul empobrecido ou da violência urbana. Muitos destes centros periféricos são também áreas fortemente afectadas pela recente crise económica que atravessa a Europa, ao contrário dos centros históricos que floresceram com a mesma crise devido ao turismo.

A periferia do centro está entre a degradação do passado recente e a construção avulsa de um futuro próximo, tornando-se o grande desafio para as futuras políticas públicas de arquitetura, do património e ordenamento do território. Povoam, de forma desordenada, as antigas industrias arruinadas e os novos polos de armazéns,  os bairros sociais e os condomínios fechados, os polos universitários e as escolas encerradas ou as estradas rurais e as autoestradas.

Os novos centros aguardam uma requalificação e reutilização dos seus espaços públicos, tanto do espaço exterior comunitário como de equipamentos públicos de educação, saúde, cultura e lazer. Este espaço público deverá ser também o espaço privilegiado de ligação entre os novos centros e o centro histórico, fomentando a inclusão, a integração e a verdadeira democratização da vida urbana. Hoje, com toda a legitimidade, os novos centros das cidades reivindicam os mesmos direitos que os centros históricos.

Porém, hoje também assistimos à importação de processos de atuação na periferia para os centros consolidados, como é visível na transformação radical dos quarteirões do século XIX ou nas intervenções artísticas que apagam o legado da cultura moderna, como  é o caso do conjunto residencial “Foco”, projetado por Agostinho Ricca, na década de 1960, para o eixo da Boavista, a área de expansão mais significativa da cidade do Porto. Ou seja, contraditoriamente, a cultura dos novos centros continua a contaminar os velhos centros.
 


 
 
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Gonçalo Canto Moniz



 
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