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09-01-2018        Público

Desde J-J Rousseau que as desigualdades passaram a ser vistas como fenómenos seculares (suscetíveis de ser alterados) e não como fatalidades do destino. O triunfo do racionalismo e a Revolução Industrial imprimiram-lhe maior consistência. Daí a força política que a linguagem “de classe” e a fórmula da “luta de classes” alcançou no mundo a partir do século XIX. A relação causal entre a escassez de recursos de uma classe (os trabalhadores assalariados) e o enriquecimento de uma outra classe (os proprietários dos meios de produção ou capitalistas) serviu de base ao argumento central de Karl Marx, quando caracterizou o sistema capitalista como fundado nesse antagonismo. Com efeito, a luta de classes ganhou expressão na esfera industrial e estendeu-se muito para além da revolução bolchevique.

No entanto, tal não impediu que as desigualdades “de classe” evoluíssem ao longo do século XX segundo contornos cada vez mais complexos e longe da visão dicotómica expressa no Manifesto do Partido Comunista (1848). Se a teoria marxista da “luta de classes” (materialismo histórico) teve o impacto e adesão que teve no mundo, tal deveu-se ao simplismo da sua mensagem emancipatória e à tendência ancestral do senso comum de recusar a complexidade dos fenómenos. Sobretudo a partir do pós-II Guerra Mundial, perdeu força política a ideia do operariado como “classe-para-si” determinada pela infraestrutura económica. É certo que permaneceram as conexões entre a acumulação de riqueza dos muito ricos e a reprodução da pobreza das camadas mais desapossadas, mas a classe trabalhadora revelou-se incapaz de travar essa tendência. Antes aderiu ao Estado de bem-estar e legitimou o “compromisso histórico” com o statu quo capitalista.

Mais recentemente, o fenómeno da globalização não parou de a agravar ao longo das últimas três décadas. O tempo das “vanguardas” esgotou-se perante a crescente segmentação, precariedade e fragilização dos trabalhadores e do campo sindical. Mesmo admitindo que os mais pobres e miseráveis estão hoje menos pobres e miseráveis do que no passado, a distância entre as camadas mais pobres e a situação privilegiada dos mais ricos não parou de aumentar. Por isso continua a ser importante ter à mão o baú dos conceitos marxistas para atualizar a leitura crítica do capitalismo global. Mas apesar das divisões e injustiças do mundo, este continua a ajustar-se aos ditames do mercado e do capitalismo, inclusive com o consentimento e o papel ativo dos grupos subalternos. Os pobres — e mais explorados — são em geral os que mais aceitam e admiram o poder e riqueza das elites privilegiadas. Assim, as dificuldades em suplantar a ordem capitalista só podem compreender-se indo além do pensamento de Marx. Daí a necessidade de convocar um outro clássico das ciências sociais, igualmente estudioso do capitalismo e das formas de dominação. Max Weber fornece-nos uma outra perspetiva sobre o conceito de “classe” nas sociedades modernas. Durante muito tempo obscurecido pelas promessas emancipatórias do marxismo, Weber voltou a ganhar relevo sociopolítico à medida que a realidade do mundo, nomeadamente as profundas mudanças no campo produtivo, pôs em evidência os limites do campo marxista no plano da análise social, e revelou os seus efeitos perversos no plano politico-doutrinário.

Vale a pena recuperar conceitos weberianos como “classe, status e partidos” para entender as novas linhas que hoje se desenham na definição das desigualdades e formas de ação coletiva. Em cada uma dessas noções reside um fundamento particular de distribuição de recursos: poder económico (classe), poder social (status) e poder político (partidos). Weberianizar o marxismo pode ser um passo importante na atualização da teoria sociológica sobre o tema. Segundo Max Weber, as desigualdades sociais traduzem-se na distribuição desigual do poder, mas, ao contrário do marxismo, esta perspetiva recusa frontalmente o “determinismo do económico” sobre a consciência e as formas de ação coletiva.

Nesta mesma linha, pode dizer-se que: (i) a riqueza económica ou controlo da propriedade; (ii) o estatuto ou prestígio resultante do desempenho de determinadas profissões/ qualificações; e (iii) o maior ou menor acesso ao poder político constituem critérios — indicadores — que devemos considerar de forma articulada. É o conjunto desses diferentes “recursos” e o volume ou peso relativo de cada um deles (riqueza, prestígio e poder) que define a “classe” de cada indivíduo e, consequentemente, estabelece os parâmetros onde se desenrolam as trajetórias de vida e oportunidades de cada um (ou, se preferirmos, de cada família/grupo doméstico). A “classe” corresponde, no fundo, à estrutura de relações sociais onde cada um de nós se insere e que, no fundo, tende a perpetuar. Assume-se sob a forma de “barreiras” que vão além da esfera económica e transcendem o nível da racionalidade e da “consciência”. A sua objetividade está para lá da mera riqueza económica (ou da sua ausência). Ao incorporar-se nos esquemas mentais de cada um, a condição de classe traduz-se em modelos comportamentais concretos (que podem ir do consentimento à resistência e protesto), mas é um campo muito mais plural do que indicam as abstrações marxistas.

Em Max Weber, a expressão “consciência de classe” não faz sentido. Apesar de reconhecer que homens de uma mesma classe, principalmente de base económica, podem integrar “ações de massa”, Weber não deixa de considerar um equívoco tomar a classe como equivalente a uma comunidade. E demarca-se de Marx quando afirma que tal “não deve levar àquele tipo de uso pseudocientífico dos conceitos de ‘classe’ e ‘interesse de classe’ observado com tanta frequência, hoje em dia, e que encontra sua expressão mais clássica na afirmação de um autor talentoso, de que o indivíduo pode errar em relação aos seus interesses, mas que a ‘classe’ é ‘infalível’ em relação a esses interesses” (Max Weber, Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC., p. 216).

A partir desta conceção será possível não só questionar o conceito marxista de “luta de classes”, designadamente o princípio vanguardista da “consciência de classe”, indo ao encontro de leituras “pós-marxistas”, nomeadamente as que põem a tónica não na “consciência” mas na “identidade” enquanto fator impulsionador da ação coletiva (P. Bourdieu ou E. Laclau demonstraram-no). Isso pressupõe reconhecer um papel mais alargado às forças do mercado, em particular ao mercado de trabalho, uma dimensão que ganha relevo não apenas pelo seu papel decisivo na relação capital-trabalho, mas também no seio dos próprios trabalhadores. Ou seja, o aumento da concorrência entre “aptidões”, “habilidades”, “credenciais” e formas de “reconhecimento” (leia-se uma dada condição de status) também se inscreve na classe. Efetivamente, tais elementos estabelecem linhas de demarcação no interior da categoria mais ampla dos assalariados, induzindo segmentações que, embora raramente assumidas pelos representantes e líderes sindicais, aumentam a confusão entre a defesa dos interesses corporativos de um dado grupo e a proclamação (no abstrato) de um mítico “interesse” político em nome da “classe trabalhadora”.

Por seu lado, o conceito weberiano de “partido” assume uma conotação menos convencional. Corresponde a uma “associação” destinada a influenciar as decisões políticas no quadro de uma dada comunidade, clube ou do Estado. Mas a sua ação deriva com mais probabilidade da situação de status (e das afinidades culturais e identitárias) do que da situação de “classe”. Os meios de alcançar o poder podem ser variados, “indo desde a violência pura e simples, de qualquer espécie, à cabala de votos através de meios grosseiros ou subtis: dinheiro, influência social, a força da argumentação, sugestão, embustes primários, e assim por diante, até as táticas mais duras ou mais habilidosas de obstrução parlamentar” (ibidem, p. 227).


 
 
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Elísio Estanque



 
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