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12-01-2018        Público

“A tradição dos oprimidos ensina-nos que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é a regra”. Esta frase foi escrita por Walter Benjamin em 1940, quando procurava fugir, através da França, rumo à Espanha e depois ao exílio nos Estados Unidos, jornada que viria a ser brutalmente interrompida pelo seu suicídio. O contexto era o da ascensão e triunfo do fascismo e dos meses iniciais de uma guerra que viria a ser a maior manifestação de violência, morte e destruição da história da humanidade. A frase ecoa hoje de um modo especialmente vivo, num momento de grande turbulência como aquele em que vivemos, e que tem sido por vezes comparado com o período em que se forjaram as condições que levaram à Segunda Guerra Mundial.

Falar hoje em estado de exceção evoca, desde logo, a deriva securitária que levou à suspensão ou limitação dos direitos dos cidadãos, o reforço da vigilância policial e a ação repressiva dos estados, em países tão diferentes como a França, a Turquia, o Egito ou os territórios Palestinianos sob ocupação de Israel. Mas Benjamin convida-nos a olhar mais longe, para o estado de exceção como uma condição permanente daqueles e daquelas que sofrem diferentes formas de opressão, pela sujeição a formas de violência que têm na guerra, na perseguição e no genocídio as suas expressões mais visíveis, mas que são tecidas quotidianamente pela desigualdade, pela exploração do trabalho, pelo racismo, pelo sexismo, pela homofobia, por discriminações múltiplas, pela desumanização da diferença e por ações e omissões de estados na sua função de proteção dos cidadãos.
A experiência dos oprimidos evocada por Benjamin, ao considerar que o estado de exceção sempre foi para estes a regra, desvela a fragilidade e vulnerabilidade de quem vive em condições de privação ou de extrema desigualdade marcadas pela ausência da rotina e previsibilidade da vida quotidiana, da degradação de condições de vida, de trabalho, de habitação, de saúde, de acesso a serviços públicos. Mas uma das suas manifestações mais visíveis é a exposição a eventos ou situações extremas, que ameaçam a vida, a saúde e a segurança de uma parte crescente da população mundial, afetando, de maneiras distintas e com consequências diferentes, é certo, populações do Norte e do Sul.

Fenómenos como epidemias de gripe ou de cólera, fogos florestais, vagas de frio ou de calor, sismos, tempestades e furacões assolaram de forma particularmente violenta diferentes partes do planeta durante o ano de 2017, temendo-se que o panorama para  o ano que começa não seja diferente. A exposição e vulnerabilidade a esses eventos crescem à medida que se vão ampliando as desigualdades à escala mundial, e mesmo nos países mais ricos do Norte, como têm revelado estudos recentes e um relatório da ONU, publicado em dezembro de 2017, sobre a pobreza extrema nos Estados Unidos. Para uma parte crescente da população mundial, a ameaça de exclusão torna as suas vidas ainda mais precárias perante eventos extremos ou formas várias de violência. Os mais ricos protegem-se contra os efeitos de alguns desses eventos, seja pela sua maior mobilidade ou por residirem em lugares considerados seguros, seja, como aconteceu nos recentes incêndios na Califórnia, pela aquisição de serviços privados de combate ao fogo. Mas as guerras, os conflitos e os desastres são também oportunidades a não perder de acumulação de capital. A indústria do armamento – com a cumplicidade dos estados onde estão sediadas as empresas -  e o tráfico de armas florescem com a proliferação de guerras e de conflitos armados. Na ilha de Porto Rico recentemente devastada pelo furacão Maria, repete-se de forma exemplar um cenário já conhecido. Como tem acontecido em diferentes partes do mundo, nos últimos anos, na sequência da destruição causada por tsunamis ou por furacões, os desastres são rapidamente transformados em processos de apropriação do espaço, de privatização de serviços públicos, como as escolas, e em contratos de reconstrução, em suma, em novas oportunidades de acumulação de capital, alimentando o capitalismo de desastre, como lhe chamou Naomi Klein.

É hoje reconhecida a influência da ação humana e, em particular, da constituição e dinâmica histórica do capitalismo, nas transformações da geosfera e da ecosfera, nas alterações climáticas globais e na distribuição geográfica, ecológica e social da vulnerabilidade de populações, comunidades e territórios. Mas esse reconhecimento deve ser convertido em capacidade permanente de resposta a problemas que, pela sua natureza, são de ocorrência ou frequência imprevisíveis. O papel do estado, aqui, é imprescindível, reforçando todas as vertentes da sua ação orientadas para a proteção e promoção do bem-estar dos cidadãos, por via de políticas públicas e de arquiteturas institucionais adequadas. Mas se esse é um dever do estado, não é menos importante transformar o modo como este se relaciona com os cidadãos, contribuindo para a constituição de um espaço público de novo tipo, mobilizador das experiências e dos saberes, das forças e capacidades de uma sociedade capaz de se imaginar e agir, não como exterior a uma natureza a explorar livremente e impunemente, mas como uma sociedade-na-natureza. E, claro, capaz de enfrentar as forças para as quais os desastres, as guerras e a degradação social e ecológica são, acima de tudo, oportunidades de negócio. Mas este é um tema para outra crónica.


 
 
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João Arriscado Nunes



 
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