Em 2018 assinalam-se 20 anos após a realização do primeiro referendo em Portugal. Corria 1998 e, por acordo entre dois líderes partidários, a despenalização do aborto aprovada pela maioria parlamentar ficou sem efeito e foi remetida para referendo, deixando as mulheres numa situação de vulnerabilidade que se arrastou para a década seguinte. Recorde-se que foi apenas em 2007, após a notável Campanha Fazer Ondas com a clínica móvel das Women on Waves e um segundo referendo sobre o tema, que a interrupção voluntária da gravidez (IVG) até às 10 semanas foi finalmente despenalizada.
Os resultados do exercício referendário são conhecidos e ensinam importantes lições em matéria de cidadania reprodutiva.
A primeira lição é a da demagogia. O recurso a argumentos pouco sérios e de honestidade intelectual duvidosa, repescando velhos fantasmas sexistas, entre os quais o da mulher promíscua e o da má mãe, foram trazidos para o centro do debate cultural, alimentando o medo de que, com o direito à escolha, se estabelecesse o princípio do fim da humanidade. Anunciava-se então o crescimento exponencial do número de abortos e reincidências, com o associado decréscimo irreparável da taxa de natalidade, como se esta e aquele estivessem, necessariamente, associados. Toda a importante reflexão acerca das condições de precariedade laboral que leva a que muitas pessoas (mulheres e homens, já agora) adiem ou cancelem projetos de parentalidade ficou por fazer. Curiosamente, ou talvez não, após um período de estabilização, o número de IVGs tem vindo a diminuir de forma sistemática desde 2012, com 71% dos casos a constituírem a primeira vez em que a mulher abortou (Direção Geral de Saúde, 2016). Acresce que, em todos os anos após 2007, Portugal fica abaixo da média europeia no número de IVGs realizadas.
A segunda lição é a do défice de laicidade. Para quem julgava que a consolidação democrática havia dotado o país de mecanismos de proteção face ao poder fáctico de um setor historicamente conservador face aos direitos das mulheres, cedo percebeu que a ingerência judaico-cristã não se ficaria apenas pelo silêncio cúmplice. A influência, direta ou subtil, do prelado católico traduziu-se em formas diversas que oscilaram entre ameaças de excomunhão a crentes que votassem pelo direito à escolha e a recuperação de uma retórica caritativa que apelava às mulheres grávidas que doassem para adoção as crianças que fossem, afinal, forçadas a ter. Na esteira deste discurso, multiplicaram-se as associações que prometiam fraldas e leite em pó a troco de uma maternidade não desejada.
A terceira lição é a da precariedade dos direitos reprodutivos. Se a autodeterminação dos povos constitui um princípio inalienável desde o fim da Segunda Guerra Mundial, já a autodeterminação reprodutiva enfrenta inúmeros obstáculos que enfraquecem, em conteúdo e em forma, o respeito pela dignidade e pelos Direitos Humanos. Apenas dois exemplos, mais recentes: sabemos hoje, vinte anos depois desse primeiro referendo, que até 2016 uma mulher solteira não podia recorrer a técnicas de procriação medicamente assistida sem a tutela de um marido ou companheiro no quadro de uma relação heterossexual. Sabemos também que, ainda hoje, uma mulher que decida de forma informada e consensual fazer uso do seu corpo para facilitar o acesso à parentalidade por parte de outra pessoa, apenas o poderá fazer de forma altruísta e no quadro estrito de uma situação clínica comprovadamente impeditiva, o que afasta Portugal de países como a Austrália ou o Canadá nos quais a gestação de substituição está regulamentada de forma abrangente.
As lições do referendo reportam-se a um tempo que nos pode parecer distante, quase absurdo. A ilusão que esse distanciamento convoca dilui-se de forma assustadora quando observamos, entre a incredulidade e a impotência, sinais de contração em direitos sexuais e reprodutivos não negociáveis em países com democracias que julgávamos, porventura, consolidadas. Em Janeiro de 2017, no mês em que se assinalava a legalização do aborto nos EUA obtida em 1973, Donald Trump anunciou a proibição de financiamento público a grupos internacionais que realizam abortos ou que prestam informação sobre IVG. Essa decisão acontece num contexto em que, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, morrem a cada ano 47 mil mulheres por complicações decorrentes de IVGs feitas de forma ilegal e insegura. Mais recentemente, em Dezembro, a Administração Trump anunciou uma lista de palavras a serem banidas das agências de saúde norteamericanas, incluindo Centros de Prevenção e de Controlo de Doenças. Dessa lista de palavras proibidas constam feto, transgénero, diversidade e vulnerabilidade, bem como as expressões “assente em evidência empírica” ou “fundamentado em dados científicos”.
Com efeito, de todas as lições do referendo de 1998 se pode extrair a constatação da assimetria de género à qual corresponde uma assimetria de poder. E se as desigualdades na esfera económica, laboral e política estão amplamente reconhecidas, talvez não seja inútil recordar o quadro de fragilidade simbólica em que a autodeterminação reprodutiva se insere.
Um dos maiores sucessos do ano que passou foi a adaptação televisiva do livro The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood, uma distopia acerca de um regime totalitário em que as mulheres férteis são presas e forçadas a engravidar por membros da elite dominante num contexto de forte decréscimo da taxa de natalidade. À luz do que sabemos hoje sobre autodeterminação reprodutiva, a imposição de um modelo de parentalidade forçada, em que a gravidez é interpretada como destino e revestida de um manto de magnanimidade sacrificial em prol do bem comum, começa a parecer menos distópica do que poderia parecer a um leitor ingénuo de The Handmaid’s Tale.