Atividade associada à produção de bens, prestação de serviços e desempenho de tarefas, o trabalho constitui um valor central das sociedades, tanto em termos económicos, quanto identitários, simbólicos ou psicológicos. Nos países capitalistas desenvolvidos (o Norte global), em parte como resultado das transformações decorrentes da Revolução Industrial e de muitas lutas operárias, ao direito ao trabalho juntar-se-ia o direito do trabalho assente em: redução do horário de trabalho; proteção contra despedimentos; melhoria de condições laborais; aumentos salariais; férias; subsídios; repouso; igualdade de género, etc. Por sua vez, no plano internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirmou-se (desde 1919) como “guardiã” de uma agenda para o mundo do trabalho onde o “trabalho digno” ocupa um lugar central.
Com o acentuar da crise económica e austeridade social dos últimos anos (em particular a periferia da zona euro), o “fator trabalho” conheceu evidentes sinais de retrocesso, testemunhado por uma intensificação de modalidades de trabalho precário: a tempo parcial, temporário, a termo, bolsas, estágios induzidos pelo Estado, etc. No contexto português, a “geringonça” possibilitou a recuperação (mesmo que parcial) de direitos retirados pela austeridade.
E o que dizer do direito ao trabalho na periferia do sistema capitalista mundial (o Sul global)? Contará verdadeiramente para as estatísticas dos países do Norte? Ante a ausência de processos de regulação laboral internacional capazes de garantir padrões laborais mínimos, uniformes e emancipatórios — tanto dentro do Norte como do Sul, como sobretudo entre o Norte e o Sul —, como perspetivar o direito ao trabalho a partir do Sul global?
Uma resposta, mesmo que incompleta, a estas interrogações obriga a olhar para as formas de trabalho praticadas no Sul global, as quais, por sinal, se encontram igualmente presentes nas franjas subalternas dos mercados de trabalho do Norte. Destaco três dessas formas:
1. O trabalho informal. Ainda que uma postura anti-capitalista constitua a matriz fundadora das organizações que historicamente mais defenderam os interesses do mundo do trabalho (os sindicatos), essa postura acabou por revelar-se seletiva. Por um lado, ao valorizarem-se sobretudo os interesses de quem acede a um mercado formal de trabalho. Por outro lado, ao desvalorizarem-se milhões de seres humanos que, no Sul global, têm no trabalho informal a sua única fonte de subsistência. Daí a necessidade de um esforço redobrado de atenção e de maior inclusão, como o que é desenvolvido por organizações como a Self Employed Women’s Association (www.sewa.org), em Gujarat (na Índia).
2. O trabalho infantil. Se o direito ao trabalho é sinónimo de liberdade e autonomia, então é tão crucial defender o direito ao trabalho de adultos quanto garantir o direito ao não trabalho de crianças. Sobretudo em África, Ásia e Pacífico, os 152 milhões de crianças submetidas a trabalho infantil (segundo dados da OIT) — repartidas por múltiplas formas de trabalho (em minas, fábricas, campos agrícolas, em resultado de exploração sexual, etc.) — são a expressão mais acabada da negação do direito ao trabalho. O facto de não existirem quadros legais e práticas culturais uniformes que garantam um tratamento igualitário aos direitos das crianças no Norte e no Sul não pode ser motivo para que os países do Norte fechem os olhos a uma realidade que, em sua “casa”, porventura já consideram debelada ou secundária. Se o Norte (designadamente a Europa) ainda hoje procura efetivar um pilar europeu dos direitos sociais, imagine-se a falta que ele faz nos países do Sul.
3. O trabalho imigrante. Os movimentos de populações da periferia para o centro demonstram igualmente tratamento diferenciado para todos aqueles que, fugindo de guerras, da fome ou de catástrofes, anseiam por direito ao trabalho no Norte. Em países como a Alemanha, França, Reino Unido ou Estados Unidos da América, entre outros, a criação de sinergias entre organizações sindicais e organizações comunitárias é crucial para pressionar governos e opinião pública sobre a necessidade de elevar os patamares de dignidade no acesso ao trabalho de comunidades imigrantes. Afetados pela escassez de recursos económicos, sociais, culturais ou políticos, os trabalhadores imigrantes, muitas vezes “sem papéis”, veem a sua ambição de integração socioprofissional frequentemente confinada a atividades como serviços de limpeza, lavagem de carros ou venda ambulante nas ruas. Estas e muitas outras atividades mostram como o acesso ao trabalho em países do Norte por parte de homens e mulheres provenientes do Sul se processa pela porta pequena.
Por vezes combinadas, estas três formas de trabalho — informal, infantil e imigrante — são apenas uma pequena amostra das distintas perceções e realidades que perpassam o direito ao trabalho enquanto princípio de dignidade humana. Tais formas permitem denunciar o fosso que existe entre o Sul e o Norte globais, ainda que sem perder de vista as assimetrias internas que também se verificam tanto em países quanto em blocos regionais associados ao Norte desenvolvido.
Em nome de uma maior democratização e humanização do trabalho, não pode ser mais importante recuperar o retrocesso civilizacional no Norte (i.e., a perda de direitos outrora conquistados) do que construir avanços civilizacionais no Sul global. Aqui, afinal, o verdadeiro direito ao trabalho não passa de uma quimera.