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01-11-2002        Público
O pretexto deste artigo é a recente demissão do Reitor da Universidade de Coimbra. Mas não será sobre tais peripécias que ele se deterá. O único ponto de ligação é este: um acto de dramatização como o de uma demissão, sobretudo quando causa tanta perplexidade, deve, pelo menos, servir para que não se perca a oportunidade de trazer para cima da mesa algumas das questões que importa discutir. Porque, a meu ver, este episódio resulta lapidarmente de dois dos mais nebulosos assuntos que manietam a vida universitária actual. Um é o das relações de poder que, dentro da instituição universitária, cristalizaram uma forma de governo bloqueadora, autofágica e descentrada: neste âmbito, é absolutamente essencial a questão das relações entre as máquinas associativas estudantis e os poderes institucionais do governo universitário e do governo político. A outra questão é a do financiamento e da obsessiva redução da política universitária a este tema, sobretudo quando ele aparece na praça pública como mero assunto de gestão contabilística ou de aferição literal dos instrumentos legislativos.

Não é esta a altura para um discurso de sociologia política sobre o significado da voz estudantil nas sociedades actuais (muito menos para glosar a distinção, tão cara à minha geração, entre movimento estudantil e movimento associativo). O ponto parece estar no seguinte: as associações académicas consolidaram-se como fortes aparelhos de gestão material e política que rapidamente aprisionaram alguns dos mecanismos essenciais de formulação da decisão universitária. Verdadeiramente, nada distingue hoje o discurso de um ‘associativo’ do de um reitor ou de qualquer administrador universitário: as percentagens usadas, os conceitos, os bordões, as formas de questionamento dos poderes políticos são, rigorosamente, semelhantes. O que significa que eles gerem uma e mesma coisa. E o que é que eles gerem? Gerem os grandes dilemas (políticos, aliás) da qualificação e do conhecimento das sociedades complexas? Assumem as preocupações das famílias cujos filhos estão a entrar no sistema? Partilham as questões que as universidades passaram a conhecer quando depararam com o facto de que não são hoje as únicas (e, porventura, nem sequer as principais) fontes de produção de conhecimentos na sociedade? Qualificam a noção de autonomia universitária e fortalecem-na enquanto instrumento de novas respostas sociais? Não, gerem ETI (não importa definir a sigla...), orçamentos-padrão, rationes de diferente proveniência, m2, factores de convergência, percentagens, percentagens, percentagens... E, sobretudo, fazem-no em generosos minutos de televisão...

E vem mal ao mundo por tudo isto acontecer? Não viria, se o resultado mais sólido não fosse uma enormíssima redução dos campos em que se joga o poder universitário e um poderoso curto-circuito nos processos de legitimação democrática e cívica (já se atentou, por exemplo, no facto de os colégios que elegem os reitores variarem, em Portugal, entre pouco mais de 40 e cerca de 300 membros? Defendi em Maio, no Diário de Coimbra, a eleição universal e ponderada por toda a população universitária).

O ponto é, portanto, o seguinte: é crucial escancarar e tornar vivíssima a discussão sobre as actuais relações de poder dentro da universidade. A ilustração do problema está disponível e é colorida: veja-se tudo o que tem sido dito em Coimbra, nos últimos dias.

Indiquei o financiamento como o segundo tema essencial. A história é longa. É indispensável referir que dela faz parte a noção de que o financiamento não pode ser um acto discricionário de um ministro ou da burocracia estatal: uma espécie de gestão sobre uma folha Excel em que, a partir de Março ou Abril, se anualizam as requisições de cada universidade à contabilidade pública e depois se vai dando dinheiro em função da capacidade para gritar mais alto, da simpatia das burocracias intermédias, do humor da ministra das finanças, da luminosa intuição do ministro do sector. Não pode ser assim, mas a probabilidade de o vir a ser é enorme. Este governo não tem cultura de contratualização a não ser com os poderosos do mundo privado; a sua propensão para a desvalorização dos mecanismos institucionais de qualificação da sociedade é gritante. Os princípios estabelecidos na actual lei do financiamento são bons mas exigem princípios ainda melhores de renovação (trabalho que começou a ser feito em 2000): o que não será bom é subvertê-los, assim como não foi bom lê-los de forma redutora.

O governo vai fazer mal, infelizmente. Mas não lhe terá sido facilitada a tarefa? Apetece lembrar "Pedro e o lobo". Alguém distingue, nos discursos universitários, os argumentos de hoje daqueles que eram usados quando os aumentos anuais do OE eram de dois generosos dígitos? Ora, "Pedro e o lobo" é uma história divertidíssima (para o Pedro) quando não há lobo, mas um pouco incómoda quando ele, afinal, aparece.

O ponto é este: o esquema de financiamento que a sociedade portuguesa mobilizou para as suas instituições públicas de ensino superior foi um instrumento de exigência universitária, de rigor para com o seu corpo docente, de criação de confiança nos cursos que se multiplicavam, de atribuição aos estudantes de um papel valioso na qualidade do ensino? Ou foi uma confortável almofada, que pareceu ter isentado as universidades de darem prioridade a tanta coisa (número e natureza dos cursos, total tolerância para com a permanência irresponsável de estudantes sem aproveitamento) que só parecia ter pouca importância porque não entrava no input-output da fórmula de financiamento? Ou foi, ainda, um mecanismo de discussão nominal, contabilística, burocrática, um pau de arremesso? De facto, devemos interrogar-nos se não é uma noção de Estado-multibanco que tem presidido, em permanência, às relações do sistema com os governos. E hoje, as instituições têm um argumento transparente na mão ou estão prisioneiras de percentagens, saldos, padrões, quocientes: dos jogos de sombras em que tudo se transformou? Dito de outro modo, estão bem armadas para uma luta necessária com o casuísmo e a desconsideração governamental que aí vêm?

Por isso, o meu segundo ponto conclusivo é este: é necessário ter a noção que as universidades vão entrar numa fase de vida muito difícil e estão profundamente enfraquecidas para travar uma luta que não pode ser apenas de sobrevivência, tem de ser de robustecimento. Repor, de uma maneira frontal e rigorosa, a questão do investimento social na universidade é basilar. Mas nenhum dos instrumentos de pressão, das retóricas formais, dos mecanismos de barganha até agora liberalmente usados serve para isto. Ora, é também crucial escancarar e tornar vivíssima o discussão sobre as relações entre a sociedade e a universidade, a propósito do financiamento (tema que, aliás, se deve converter no do investimento social na universidade).

Evidentemente que estas são apenas duas das muitas questões que podem contribuir para alcançar o propósito expresso no título deste texto (que é, obviamente, tomado de empréstimo a João Martins Pereira, quando os tempos e os assunto eram outros). Parece-me, contudo, que é indispensável começar por aqui...

 
 
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José Reis