A presidência de Donald Trump concluirá o seu primeiro ano de exercício de funções em janeiro. Neste ano, habituamo-nos ao que antes nos escandalizaria, tal é a frequência com que o presidente norte-americano incendeia a opinião pública internacional através das suas declarações e ações executivas. O choque que inflige em todos nós tem, no entanto, o efeito pernicioso de nos tornar indiferentes a muitas das suas ações. Enquanto nos preocupamos (justamente) com o perigo de uma guerra nuclear, ficamos alheados de reformas políticas estruturantes, que só na aparência se limitam ao território dos Estados Unidos da América (EUA). A reforma fiscal recentemente aprovada pelo Senado (51 votos contra 49) é um desses exemplos, conquanto seja, provavelmente, a legislação de maior relevo conseguida por Trump.
Esta reforma é um exercício desavergonhado de transferência de rendimentos através de enormes reduções nos impostos dos mais ricos. Oitenta por cento de todos os cortes anunciados só beneficiam quem ganha mais de um milhão de dólares por ano. Tais ganhos para os mais ricos são obtidos, por um lado, através de redução de impostos sobre rendimento e património individuais (para a família Trump, foram avaliados em mais de mil milhões de dólares, com a reforma do imposto sucessório) e, por outro, como efeito da redução abrupta dos impostos sobre capital, o equivalente ao nosso IRC. Destas políticas resultará um buraco orçamental que em breve dará origem à conhecida lengalenga do "não há dinheiro" para salários, pensões e serviços públicos.
Está enganado quem pensa que isso é um mero problema dos norte-americanos. Devido à sua importância na economia internacional, os EUA são ainda uma espécie de "vanguarda" do futuro que nos espera em muitos domínios. E, se é verdade que no plano geoestratégico e noutros, os EUA estão hoje em tensão com o poder de países emergentes, o mesmo não se passa no plano social, pois não serão os países em crescimento económico e em desenvolvimento - mas que partiram de níveis de proteção baixíssimos - que, por agora, virão contrariar esta política. Num contexto de predominância global da ideologia e das práticas neoliberais, e com os poderes da União Europeia a destroçarem o modelo social que foi ancoradouro do seu desenvolvimento, fica frágil a situação dos trabalhadores e povos europeus.
Do lado de cá do Atlântico, também já ouvimos dissertações sobre as vantagens de diminuir impostos aos ricos como forma de ajudar os pobres. Se tais políticas ganharem fôlego, amanhã ouviremos em Portugal invocar-se a redução do IRC como indispensável para fazer face à competição internacional, nomeadamente a americana. Em suma, podemos não votar nos EUA, mas as suas políticas, mesmo as que aparentemente possuam um caráter nacional, têm fortes implicações nas nossas vidas.
Estas notícias recentes devem ser fonte de redobrada preocupação e vigilância. Assistimos a um encantamento de elites do Centro-Direita, que hegemonizam a agenda dos grandes meios de Comunicação Social, com o "macronismo" reinante nas instituições europeias. Líderes como Emmanuel Macron, estando nos antípodas do estilo de Trump, preservam direitos democráticos, mas utilizam uma conversa fiada sobre outros direitos e afiam a faca contra os direitos no trabalho. O conteúdo do Pilar Europeu de Diretos Sociais, recentemente criado e assumido por setores da social-democracia como uma "nova" esperança, pode vir a consubstanciar-se em proteções mínimas que, longe de garantirem dignidade ao trabalho e aos direitos sociais, serão tanto mais regressivas quanto mais se combinarem com reformas fiscais que desoneram o património e o capital e com "novas" políticas laborais (as propaladas reformas estruturais) que cortam direitos e salários ao geral dos trabalhadores.
Em Portugal, é necessário aprofundar o combate às desigualdades, incluindo nele políticas de valorização salarial e de garantia de direitos laborais e sociais, e uma reforma fiscal numa lógica "anti-Trump". Assim, talvez possamos ser "exemplo europeu" no que realmente importa, a prosperidade e o bem-estar das populações.