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12-04-2006        Diário Económico
Estamos perante uma revolta estudantil não-conservadora, coisa que há muito não se via por estes lados da Europa.

O caso francês dos dias que correm tem sido interpretado de vários ângulos. Mais uma bizarria gaulesa, uma resistência conservadora e inútil às inevitabilidades modernas da globalização, uma luta clássica da esquerda contra a direita, um novo Maio. É provável que seja um pouco de tudo. Mas uma coisa me chama particularmente a atenção: estamos perante uma revolta estudantil não-conservadora, coisa que há muito não se via por estes lados da Europa.

Nos últimos anos, pelo menos em Portugal, as lutas das vanguardas associativas têm sido desesperantes. Em geral, movem-nas um corporativismo profundo, uma visão burocrática e retrógrada da condição dos estudantes. Parece que tudo começa e acaba dentro dos muros da universidade ou das associações. Na sua agenda política não há lugar para problemas da sociedade, questões do nosso futuro colectivo, ambições de cidadania. Pelo contrário, são pequenas reivindicações corporativas, empolgantes argumentações sobre proteccionismos orçamentais, defesa de resistentes privilégios de casta. A razão deste fechamento nos contornos cómodos da universidade de onde parecem não querer sair talvez esteja no facto de a agenda estudantil ter sido o resultado de uma aliança interesseira entre as burocracias associativas, por um lado, e, por outro, os próprios poderes reitorais, que dependem do seu voto e têm como racionalidade dominante uma idêntica obsessão de proteccionismo orçamental. Por isso, a melhor cultura estudantil – que a há – desenvolve-se fora destes universos.

Em França, a agenda de hoje comporta uma clara dimensão de luta política e cívica: são dilemas da sociedade os que se discutem nas ruas. Claro que já não é a sociedade do ‘boom’ de crescimento do pós-guerra que ali está, nem são as utopias e as ideologias transbordantes de 68 que agora animam os estudantes.

Qual é então o problema específico que leva tantos para a rua? Sem dúvida que se trata de uma mistura de várias motivações e objectivos, alguns bem pouco defensáveis. Mas a característica dominante é que quem se manifesta são jovens com elevadas qualificações – resultantes da democratização da universidade e da generalização do conhecimento como bem massivo. Gente dotada de um capital individual que a escola lhe deu e do qual espera retorno, é certo. Mas também gente que se supõe no centro uma sociedade qualificada como "do conhecimento" e da qual esperam ser "activos" valiosos. Sucede que as sociedades avançadas que temos se construíram sob compromissos: do Estado com a sociedade, dos trabalhadores com os empresários, dos consumidores com os produtores. Compromissos, também, entre o que é individual e o que é público ou colectivo. O mercado do trabalho e a escola são duas das grandes instituições que ilustram isso mesmo. Ora, o "contrato do primeiro emprego" veio desfazer um compromisso básico, desobrigando simbólica e juridicamente os patrões de qualquer dever construtivo perante o uso de um bem que também é público e do qual o Estado e a sociedade são os grandes produtores, o conhecimento. A lei concebe-o como facilmente "descartável" por quem mais dele beneficia, justamente a economia e os empresários. Trata-se de transformar aquela relação de mútuo envolvimento – em que o vínculo laboral, cuja forma pode ser diversa, também é, ele próprio, uma relação que desenvolve o conhecimento escolar – num uso simples e desigual, sem deveres nem reconhecimento. Neste sentido, a lei ainda propõe ao patronato que se auto-atribua uma elevada dose de miopia.

Ora, esta simplificação brutal de uma instituição básica tem custos. A direita francesa quis encarar um problema – o do desemprego jovem – sem (como já alguém disse) se preocupar com ‘nuances’ nem subtilezas, exactamente ao contrário do modo como se fizeram as instituições sobre que assentam os capitalismos europeus. Por isso, já nem se almeja utopicamente, ‘sous les pavés, la plage’. A utopia parece ser simultaneamente mais irrealizável e mais prosaica: ser-se parte de uma sociedade do conhecimento. É natural que a uma tão grande despromoção se siga uma revolta. Afinal, Paris não é no Texas...

 
 
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José Reis