Os grandes incêndios de junho e outubro revelaram de forma explícita o tipo de Estado predominante em Portugal e a sua forma de atuação. Se num primeiro momento assistimos a momentos de letargia e de desvalorização dos acontecimentos, a pressão mediática e da opinião pública obrigou o Estado e as suas instituições a uma reação rápida e à reapropriação da narrativa dominante. A propósito da pressão mediática, cabe realçar que os acontecimentos extremos de 2017 mostraram um jornalismo de qualidade e a capacidade, dificilmente visível noutros contextos, de interpelação dos poderes instituídos e de criação efetiva de contra-agendas, trazendo para a esfera pública todas as contradições da sociedade civil e, mais importante, vozes e rostos raramente visíveis ou audíveis num espaço público saturado de centralismo e de mediatismos efémeros.
O reassumir da iniciativa por parte do Estado concretizou-se num conjunto de iniciativas legislativas, de constituição de comissões e de unidades de missão, de planos e de projetos que acentuam o carácter ad-hoc e não estruturado da presença do Estado, sempre na lógica da sua perpetuação e do seu papel regulador. O caso do Conselho para Indemnização das Vítimas de Incêndios é em si paradigmático. Criado por deliberação do Conselho de Ministros, produziu um documento de grande qualidade e baseado nos princípios de solidariedade e de equidade. Cabe referir também a importância, numa perspetiva de participação cidadã, de um dos membros do Conselho ter sido indicado pela Associação das Vítimas do Incêndio de Pedrógão Grande. Contudo, este Conselho, após a definição do valor mínimo de indemnização, remete para a Provedora de Justiça a fixação final dos valores a indemnizar, calculando esta os danos patrimoniais (tarefa que assenta num longo historial de casos análogos) e, de forma discricionária, o sofrimento de quem faleceu ou ficou gravemente ferido, além do sofrimento dos familiares que sobreviveram ou experienciaram os acontecimentos.
Esta solução encontrada pelo Estado português, inédita quando comparada com casos semelhantes em contextos internacionais, desde os processos de indemnização das vítimas do atentado de Oklahoma (considerado internacionalmente como um caso exemplar tanto na indemnização das vítimas como na gestão e atribuição dos donativos), dos atentados de 11 de setembro ou, mais recentemente, das vítimas dos incêndios na Galiza, acaba por colocar a decisão final em entidades distantes das próprias vítimas e dos seus familiares. E isto por duas razões fundamentais: a) a provedora de Justiça poderá decidir sem constituir as associações das vítimas como conselheiras ou acompanhantes paritárias do processo; b) os valores a definir poderão conduzir a uma competição entre vítimas, instigadora de processos de desafiliação social.
Daí o papel central das associações das vítimas na reivindicação de uma presença ativa no estabelecimento das indemnizações finais como no relacionamento com todos os beneficiários das mesmas, assegurando-se da transparência do processo, baseado no diálogo, na igualdade, na participação e, o mais importante, numa ideia de justiça reparadora que sinalize um projeto de futuro e uma esperança para as gerações vindouras.
Todo este longo e doloroso percurso poderia servir de aprendizagem para o Estado e a sociedade civil constituírem, fora de uma lógica de atuação ad hoc e casuística, mecanismos convencionais e institucionais de atendimento às vítimas de acontecimentos extremos ou catástrofes. O Estado tem por obrigação constitucional zelar pela segurança e bem-estar de todas as cidadãs e de todos os cidadãos. Ora, um protocolo estabelecido de atuação, desde a fixação das indemnizações, o apoio psicossocial, a gestão dos donativos e os processos de reconstrução, permitiria um relacionamento com o Estado baseado em princípios e consequente.
Porque não tenhamos ilusões. A consequência maior dos grandes incêndios de junho e de outubro em Portugal foi a confirmação por todos e por todas da sua vulnerabilidade perante acontecimentos extremos, num país pautado por lógicas de planeamento e de proteção civil burocráticas e totalmente assentes nas projeções dos peritos e sem participação direta dos interessados.
Num país que muitos cientistas sociais têm descrito como tendo uma sociedade civil fraca e meramente reativa, a grande conquista passou pela força do voluntariado informal e das redes de solidariedade, bem visíveis na presença no terreno e nos montantes dos donativos. E, mais uma vez, o Estado não esteve à altura desta sociedade civil, por incapacidade ou por interesse, deixando que os donativos sejam geridos de forma nem sempre transparente por instituições estatais (Revita) ou privadas e confessionais (União das Misericórdias e Cáritas, entre outras). Como poderá um cidadão ou uma cidadã interpelar ou exigir critérios de atuação junto destas instituições privadas? Que fiscalização pode o Estado exercer sobre as mesmas?
O contraponto a um Estado ad hoc e casuístico é, em 2017, o papel das Associações de vítimas, que demonstram a força e a resistência da sociedade civil, a capacidade de transformar o sofrimento pessoal e familiar num potenciador de cidadania, num promotor de solidariedade e de construção do bem comum.