24-05-2006 Diário Económico
Formamos mais pessoas qualificadas e, apesar do seu peso ser ainda baixo, a sua utilização é escassa – veja-se a taxa de desemprego dos licenciados.
Parece-me pacífico afirmar que o grande fenómeno sociológico que marca a sociedade portuguesa desde os finais da década passada é a imigração. Aliás, num país de escassas dinâmicas demográficas, já tinha sido um outro caso de deslocação de pessoas – o retorno massivo e súbito de residentes nas ex-colónias, em 1974/75 – que constituiu uma alteração significativa da "paisagem humana" em Portugal. Este foi, então, um exemplo notável de capacidade de absorção e de plasticidade colectivas. Numa situação de crise, este fenómeno foi de curtíssima duração, enquanto problema. E mesmo a indesejável qualificação com um rótulo discriminatório negativo (os "retornados") não durou senão um breve período. Esta é a flexibilidade que os liberais não sabem ver, tão preocupados com outras "flexibilidades".
A imigração contemporânea em Portugal têm três características básicas: foi súbita e massiva (em 1990 rondava os 100 mil e hoje é meio milhão); distribuiu-se por todo o território, não se concentrando em Lisboa como acontecia quando era quase só africana (de tal modo que a região da permanente recessão demográfica, o Alentejo, passou a crescer em 2000, apesar de manter um saldo natural fortemente negativo); é uma imigração mais qualificada do que no passado.
Portugal tem, desde há anos, um saldo migratório elevado, como acontecia nos países para onde antes nós emigrávamos, mantendo um saldo natural próximo de zero. Compartilha esta condição com os restantes países do Sul da Europa, mas não, evidentemente, com os novos países da União Europeia. Esta geografia das mobilidades na Europa dá-nos uma imagem bem diferente da de outros indicadores e demonstra que o mapa da Europa se faz a várias cores.
Acontece que, no caso português, a imigração ocorre num momento em que o nosso modelo de crescimento levou aos limites a sua condição extensiva, aquela que faz dele um utilizador de enormes quantidades de mão-de-obra. Entre 1994 e 2003, o volume de população activa aumentou 19%, atingindo quase 5.5 milhões. A taxa de actividade fixou-se nos 52%, enquanto a de desemprego foi baixíssima (entre 2 e 3%, no limite inferior daquilo a que os economistas convencionais ousaram chamar taxa "natural" de desemprego).
Comparativamente, Portugal apresenta-se, de facto, como um país de alta utilização do trabalho na economia. Em 2002, a taxa de emprego portuguesa de 68% não nos revelava como um país do sul da Europa ou da "coesão" (da Itália à Grécia à Espanha e mesmo à Irlanda ela varia entre 56% e 65%), antes parecia fazer de nós um capitalismo escandinavo, onde se atingem os valores mais elevados. É particularmente significativo, enquanto revelador da natureza extensiva do modelo de crescimento, o que se passa com a taxa de emprego feminina (quase 50% mais elevada que a da Itália, Grécia ou Espanha). Mas é claro que uma participação feminina elevada no mercado de trabalho não tem, obviamente, o mesmo significado da que se verifica na Europa do Norte, pois aí não se regista o mesmo fenómeno de uso intensivo do trabalho feminino.
Esta "gula" pelo uso do trabalho resulta de a quantidade contar sempre mais do que a qualidade, para os nossos empregadores. Demonstra-o também o "paradoxo da formação" que atravessa a economia: formamos mais pessoas qualificadas e, apesar do seu peso ser ainda baixo (o que devia levar a que fossem bem valorizadas), a sua utilização é escassa (veja-se a taxa de desemprego dos licenciados), porque a economia continua a preferir, em geral, mão-de-obra pouco escolarizada e qualificada.
O trabalho imigrante é frequentemente dotado de qualificações significativas. Dado ter-se difundido territorialmente, são vários os concelhos do país em que a imigração é, simultaneamente, expressiva e mais habilitada do que a mão-de-obra local. Mas esse facto não tem ainda correspondência directa na qualificação dos postos de trabalho ocupados. Observação empírica feita junto de alguns dos sistemas produtivos locais mais dinâmicos não demonstra que, mesmo aí, as habilitações sejam suficientemente aproveitadas. Ora, o capital de conhecimento que a imigração constitui parece ser, assim, um bem desperdiçado na sociedade portuguesa. E não devia sê-lo.