15-03-2008 Le Monde Diplomatique
1. Os "factos característicos" de uma trajectória de crescimento longa
Os "factos característicos" que melhor definem as trajectórias de crescimento da economia portuguesa do último meio século são conhecidos. Mas não creio que seja desproporcionado evocá-los para responder à pergunta, muito contemporânea, sobre a existência ou não de uma política económica de esquerda para fazer face à crise actual.
Do meu ponto de vista, há três daqueles factos que é bom trazer para esta discussão. O primeiro está directamente associado à fase em que a nossa economia cresceu mais intensamente. Como se sabe, foi nos anos sessenta que isso aconteceu, num período a que alguns chamam despudoradamente "anos dourados", esquecendo a ditadura, a falta de democracia política e também a falta de democracia económica. Esse foi o momento de uma industrialização intensa, criando uma infra-estrutura de capacidades industriais assinaláveis, nos domínios das indústrias básicas e pesadas (siderurgia, química, cimentos, construção naval). Esse crescimento intenso do produto interno – uma fase de rápida, embora localizada, modernização de alguns sectores da economia – foi sobretudo o resultado directo de um investimento intensivo em capital, gerando desta forma uma alteração drástica na "função de produção", mas não originando uma modernização do conjunto da sociedade. Não assistimos a um alargamento dos mercados de trabalho, nem da qualificação das pessoas, nem do seu bem-estar.
Pelo contrário, a consequência desta industrialização e do reordenamento da nossa economia foi uma escassíssima relação entre investimento, por um lado, e emprego, por outro. Ou, se quisermos, a relação entre economia e sociedade ficou, então, mais bloqueada do que nunca. Basta relembrar que no período em que o produto cresceu mais de 7% ao ano o emprego cresceu pouquíssimo. Por isso, nesses idos de sessenta em que as bases produtivas da economia se transformavam tão significativamente, o segundo "facto característico" foi a emigração – isto é, a prova dramática de que estávamos perante um crescimento que não gerava emprego. Ou, dito de outra maneira, um crescimento que desconsiderava o trabalho, o "desutilizava" e, portanto, o rejeitava, enviando massivamente mão-de-obra para as economias em que crescimento, industrialização e expansão do mercado de trabalho iam a par.
Quer isto dizer – terceiro "facto característico" – que a internacionalização da economia se fez primeiro e mais intensamente pela exportação de mão-de-obra do que pela exportação de produtos ou serviços. E, portanto, a internacionalização das nossas capacidades produtivas que gerassem emprego e bem-estar interno, vislumbrada nos anos sessenta, foi então, como ainda é hoje, escassa e retardada. Basta lembrar que só a adesão à CCE nos colocou provisoriamente num patamar em que as exportações passaram a ser mais do que 25% do PIB, patamar de que rapidamente regrediríamos para apenas pontualmente "descolarmos" dos 20%.
Se este diagnóstico retrospectivo fizer sentido, então há três conjuntos de palavras-chave que dele resultam: capacidade produtiva, trabalho e valor internacional. São três conjuntos que não estabeleceram entre si relações virtuosas. Pelo contrário, eles funcionaram desligados. E os três podem, porventura, ser usados para falarmos de crise, da crise actual e, antes disso, para observarmos os tempos mais recentes.
2. Os tempos recentes: o caminho para uma crise
Quem observar os ciclos de crescimento da economia portuguesa desde o 25 de Abril até hoje constata o seguinte: durante estes mais de trinta anos desenharam-se três ciclos muito claros, quer dizer três períodos em que a economia acelerou o seu crescimento depois de uma recessão e o voltou a desacelerar, cavando uma nova depressão. Esses ciclos são o da democracia (entre 1976 e 1984), o da adesão à CEE (ou, se se quiser, do cavaquismo: entre 1985 e 1993) e o da preparação e entrada na UEM (ou da adesão ao Euro ou, se se quiser, o do guterrismo: entre 1994 e 2003). Contrariamente ao que, por vezes, parece pensar-se, estes três ciclos são relativamente semelhantes na duração (nove anos, medidos entre dois momento de crescimento negativo), na forma (que compreende a fase ascendente, isto é, os anos sucessivos em que as taxas anuais de crescimento do PIB vão aumentando, e a descendente, em que estas enfraquecem, chegando a um ano de valor negativo), na intensidade (taxas médias de crescimento anual da ordem dos 4%, com excepção do último que foi de menos de 3% ). Não foi, portanto, apenas o cavaquismo que nos fez atravessar uma fase de crescimento. A democracia inicial e o pós-cavaquismo fizeram o mesmo. Mas há dois dados inquestionáveis: a intensidade do crescimento diminui consideravelmente no último ciclo e, principalmente, a capacidade de retoma para lançar um novo ciclo foi fraquíssima, como o comprova o facto de o crescimento próximo de zero não se limitar a um único ano, prolongando-se desde 2003. A razão para esta alteração do comportamento cíclico regular da nossa economia – é nisso que consiste o aspecto mais visível da crise actual – tem de ser encontrada no uso que se tem feito do chamado factor-trabalho. Prevaleceu o uso em quantidade, aprofundando o que os economistas chamam um modelo extensivo. Não prevaleceu a organização empresarial capaz, a busca de qualificações, a procura da criação de valor, a diferenciação.
Reforma ou "desconstrução" social: quanto vale a sociedade para capacitar a economia?
Seja qual for a perspectiva temporal em que nos colocarmos, é possível ver para onde vai a economia e por onde ela vai. Estamos a ver que ele foi para o lado errado: o do desemprego, o da escassa criação de valor internacional o de formas de produção que não se convertem em escola de qualificações (salvo, é claro, os poucos exemplos pontuais conhecidos). Não que a economia seja um sujeito de identidade própria e perfil auto-definido. Bem se sabe que essa resposta "é a economia, estúpido" não é a mais inteligente de todas... Acontece, isso sim, que a economia caminha por trajectos ladeados por decisões, políticas, vontades e poderes que – estes sim – a encaminham e, por vezes, empurram. Quer isto dizer que há lugar para a política económica e que esta é um campo de opções essenciais, e não apenas algo que dá moldura à "economia", entendida como sujeito dotado de identidade. Por isso, no mais duro dos factos característicos que evoquei, assim como no mais incontornável dos resultados a que chegámos há, evidentemente, a presença poderosa de processos políticos e sociais intensos.
Do mesmo modo, o auge da crise económica que se declarou abertamente em 2003 suscitou a presença clara de um programa político com intuitos claros de reforma. Isso é evidente. Assumida a relação entre crise económica e promoção de reformas políticas, importa perguntar se estamos, de facto, perante reformas ou perante um processo de desconstrução social? Esta é uma linha de tensão crucial relativamente à qual se conhecem as convicções dos que não hesitam na resposta.
Parece-me claro que os tempos que correm são indistintos, sendo muito difícil perceber onde assentam as forças da economia e a vitalidade de processos sociais dinâmicos e integradores. Parece-me também claro que não estamos – longe disso! – perante uma perspectiva de desenvolvimento inclusivo. Pelo contrário, os processos de desconstrução social e política – a que frequentemente se chama reformas – são fortíssimos. Mas, ao contrário das reformas, são muito visíveis as formas de desfazer, não sendo nada evidentes as formas de fazer. Quer dizer, a fase essencial das reformas são o que elas contêm de elaboração, construção e difusão de um modelo social alternativo, assente em pilares positivos e inclusivos. Ora, é este aspecto que parece altamente deficitário na actual política económica.
O regresso ao trabalho: pessoas, organização e capacidades como resposta à crise
Acho que há, de facto, uma política económica de esquerda – a do desenvolvimento inclusivo – e que é possível definir-lhe os pilares.
O primeiro desses pilares há-de ser o trabalho: aquele factor que foi desperdiçado, desconsiderado e exportado na fase de crescimento intensivo dos anos sessenta e aquele que foi apenas usado em quantidade e de forma extensiva nos ciclos económicos do pós 25 de Abril (primeiro para que, enfim, a economia criasse emprego e gerasse democracia económica; depois para que se aproveitassem disponibilidades de mão-de-obra e salários baixos para chegar a formas fáceis de atingir crescimento).
O mundo do trabalho está abalado pela incerteza, por relações de poder muito assimétricas e pela noção de que é o elo fraco, descartável, da cadeia. A reconstituição do valor do trabalho na economia – valor material mas também valor no quadro de relações sociais dinâmicas e não agressivas – é, porventura, o pilar essencial de uma política económica de esquerda. Tendo sido perdida a noção de que o trabalho é parte das organizações, e não apenas um factor usado por elas de forma discricionária, urge regressar a esta relação, nos termos exigidos pela nova economia do conhecimento.
O primado da concorrência é outro dos grandes fachos da política económica contemporânea. O fascínio liberal apresenta-o sempre como se tudo se reduzisse ao dilema concorrência ou proteccionismo. Este dilema é falso. Ao lado dos princípios elementares da concorrência pode haver lógicas que dêem lugar à organização da economia, para lá dos mercados. Chamo a isso organização: organização empresarial, valores políticos e económicos que, em vez de apenas pensarem no "valor accionista" e na governação exclusivamente mercantil da produção, pensem também na cultura da empresa, na lealdade para com o trabalho, na valorização das capacidades, na redução da incerteza laboral. Em suma, numa relação salarial entendida como relação organizacional e não apenas como relação mercantil simples. Mas outras formas de organização são essenciais, como a organização territorial – os territórios são lugares definidores das empresas e das relações sociais que importa valorizar. Contudo, este campo da coesão e valorização territorial está ferido por relações muito desestruturadoras, pelo espalhar do casuísmo em vez do desenvolvimento, e pela insensata e brutal decisão sobre a localização do novo aeroporto, que vai virar o país do avesso, concentrando investimento num escasso território e promovendo a desintegração regional.
O terceiro pilar de uma política de esquerda há-de ser o da valorização das capacidades e da criação de competências. Das pessoas em primeiro lugar, é claro. Através da escola e da formação, sem dúvida. Mas também através da promoção de contextos que criam capacidades, para além de todas as competências individuais. É a altura de regressar igualmente ao Estado e à Administração. A direita e os liberais (mesmo os de esquerda, que também os haverá) têm dominado o palco e levam clara vantagem na propagação da ideia de que o Estado é "monstruoso" (lembram-se?) e intrinsecamente perverso (porque os seus funcionários são perversos, querem apenas maximizar os seus interesses individuais e, por isso, minam o interesse colectivo). Ora, o Estado e a Administração pública são uma das mais poderosas fontes de organização, capacitação e liderança. Sabe-o, melhor que ninguém, o capital e os grandes interesses que usam selectivamente o Estado e a Administração como mais ninguém (e não se trata apenas de quando os usam ilegitimamente a seu favor). É a este uso selectivo do Estado pela direita e pelos interesses que há que contrapor um outro uso selectivo. Aquele que faça da Administração uma fonte de criação de competências, de organização, de emulação pelas causas públicas e por uma visão inclusiva do país. A ideia (perversa) de que toda a despesa pública é má despesa tem ficado sem resposta, porque a esquerda e a lógica política corrente parece manietada por uma dura inibição. Parece-me necessário falar sem inibições da boa despesa pública, do necessário papel do Estado perante a "sociedade privada", bem mais ineficiente e tacanha que o próprio Estado nas suas piores facetas.