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13-09-2002        Público
As metáforas podem ser perigosas. Por exemplo, a "guerra contra o terrorismo". Começou por ser uma guerra metafórica, tanto como o são a guerra à pobreza ou a guerra à ignorância. Essas guerras-como-curas são objectivos em si mesmos e não podem nunca ter fim. Ora, é esse o risco: que a guerra contra o terrorismo, metáfora entretanto transformada em acto, nunca venha a ter fim e se converta num fim em si mesmo.

Para mim e para os meus contemporâneos, as palavras ‘terrorismo’ e ‘terroristas’ fazem ecoar memórias antigas. Portugal combatia "os terroristas" em África, como antes o havia feito a França na Argélia, a Inglaterra na Índia ou em Israel, ou os americanos no Vietname. Muito antes, aliás, já os britânicos haviam lutado contra os terroristas adeptos da independência das colónias na América, e acredito que também os Lusitanos de Viriato tenham sido qualificados como terroristas pelos romanos. Mas essas minhas memórias incluem mais: nesse tempo em que Portugal combatia os "terroristas" em África (e em que Mandela era um perigoso terrorista na África do Sul), era-nos dito que se fossemos firmes "até ao fim", o terrorismo não triunfaria.

Essa insistência na firmeza foi uma patética expressão de fundamentalismo míope. Temo que estejamos hoje a viver um remake dessa miopia, resultante do choque entre dois fundamentalismos: o wahabbita islâmico e o protestante puritano. Tão íntimos um do outro que já houve quem parodiasse o nome dos seus líderes: George Bin Laden e Osama Bush. Um ano volvido sobre os atentados de 11 de Setembro, o essencial é superar o fechamento que cada um destes dois discursos procura na sua firmeza redentorista e encontrar os pilares de uma alternativa de análise racional como caminho para a paz. A pergunta fundamental a fazer, de ambos os lados, não é "como os podemos exterminar?", mas sim "o que precisamos de fazer para prevenir novos 11 de Setembro?". Sugiro que essa alternativa passa por quatro aspectos principais.

Em primeiro lugar, uma desminagem do futuro. É crucial desarmar as minas colossais da fome, da intolerância e da insustentabilidade. Falar de "países em desenvolvimento" é cada vez mais reconhecidamente um eufemismo quando, dos 50 países com rendimento per capita mais baixo, cerca de 23 têm perdas absolutas de rendimento e tardarão 77 anos, nas condições presentes, a atingir o rendimento actual da Grécia. Não é senão grotesca uma "guerra ao terrorismo" que, ignorando a centralidade desta realidade bipolar, contribui dramaticamente para a acentuação do seu potencial de ressentimento e, com ele, a sua violência explosiva.

Em segundo lugar, a consolidação e democratização das instituições multilaterais internacionais. É imperioso canalizar para a justiça o julgamento dos responsáveis, e não permitir que se adoptem soluções "de conjunto" que envolvem a morte de civis inocentes e alimentam infinitamente a violência. O Tribunal Penal Internacional e o Tribunal Internacional de Justiça no plano judicial, a ONU no plano político e instituições económicas reformadas (capazes de operar um corte com o eixo do mal neo-liberal FMI-OMC-Banco Mundial) são imprescindíveis para uma governação global democrática inscrita em horizontes de paz.

Em terceiro lugar, a adopção da política – e não da guerra – como suporte da mudança. Nos últimos 100 anos, os países desenvolvidos sujeitaram o mundo a duas guerras mundiais e a 40 anos de sequestro sob ameaça de destruição nuclear. É preciso evitar que, uma vez mais, a guerra seja encarada como a base que impulsionará as mudanças necessárias. Para as inadiáveis reformas económicas, fiscais, ambientais e culturais é necessário menos maniqueismo agressivo e mais debate político.

Em quarto lugar, uma aposta estratégica na educação para a paz. Contra o recrudescimento do fascínio pelas soluções finais, a alternativa da cultura da paz passa pelo reforço da formação de competências em três domínios: a prevenção de conflitos (com especial importância para as políticas de cooperação e de diálogo intercultural); a solução pacífica de conflitos (especialmente mediação e arbitragem); e a reconstrução pós-conflito (articulando actores locais e externos, governamentais e não-governamentais).

Portugal tem uma consciência histórica recente dos becos sem saída a que levou a miopia da "guerra contra os terroristas". O desafio de uma alternativa aí está.


 
 
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José Manuel Pureza