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17-09-2002        Diário de Noticias
Os caminhos do Direito e da justiça internacionais voltam a atravessar-se no futuro imediato de Timor Leste. Durante 24 anos, o Direito e a justiça foram o argumento principal que a Resistência e a solidariedade internacional souberam brandir contra todos os que apostaram na efectividade dos factos consumados em detrimento da legalidade internacional. O apego inquebrantável dos timorenses e dos seus apoiantes à primazia do Direito Internacional foi um contributo decisivo para a credibilização da sua luta e para que, no momento certo, o que quase todos tinham por irrealista – a autodeterminação daquele povo – se tivesse tornado possível.

Ora, é esta presença constitutiva do Direito Internacional na génese do Estado timorense que está hoje a ser rudemente posta em causa. Duplamente. Por um lado, é o branqueamento dos responsáveis dos massacres de 99 que se evidencia como objectivo claro dos julgamentos-fantoche levados a cabo pelo tribunal ad hoc para os direitos humanos de Jacarta. Por outro lado, é a renúncia exigida pelos Estados Unidos a Timor Leste – e por este consentida – ao exercício pleno das suas prerrogativas como Estado membro do Tribunal Penal Internacional.

As sentenças proferidas pelo tribunal indonésio, absolvendo as altas patentes militares - cuja responsabilidade na destruição e na matança em Timor foi apurada pela própria comissão indonésia de direitos humanos – tornaram inequívoco o que os observadores mais atentos há muito denunciavam: que a Indonésia não se encontra capaz, nem disposta, para julgar os verdadeiros responsáveis pelas atrocidades cometidas pelos seus militares no território em 1999.

Com isso, o que está verdadeiramente em causa é o próprio processo de reconstrução pós-bélica em Timor. O julgamento da herança de violações dos direitos básicos impõe-se como um corte vital com a cultura de impunidade. É definitivamente inaceitável sacrificar o valor da verdade e da dignidade humana, permitindo que crimes contra a humanidade fiquem impunes, alegadamente em nome da reconciliação nacional (em Timor) e da estabilidade da transição democrática (na Indonésia). É tempo de tornar claro que a marginalização dos direitos humanos nas agendas de reconstrução promove mais exclusão e mais violência. Sendo um insulto às vítimas e ao seu sofrimento, a impunidade legitima novos crimes, cria divisões pessoais e sociais, dificulta a recuperação económica e a revitalização da comunidade, lesando assim a legitimidade e a sustentabilidade dos novos sistemas políticos e criando um profundo sentimento de injustiça que permanecerá durante gerações.

O estabelecimento de um tribunal internacional é pois fundamental para a reconstrução e reconciliação nacional em Timor Leste. Porque onde os direitos humanos e a justiça continuarem a ser ignorados, não existem garantias de que tensões e mágoas latentes não voltarão a recrudescer e a fazer perigar uma paz artificialmente forjada.

Neste quadro, a recente assinatura por Timor Leste de um tratado bilateral com os Estados Unidos, destinado objectivamente a limitar a jurisdição do Tribunal Penal Internacional, lança uma inquietante sombra sobre o futuro. Vale a pena recordar as palavras do presidente do Parlamento de Timor Leste quando da aprovação da adesão do novo Estado ao TPI: "Não queremos ver repetidas noutros países pequenos as mesmas formas de opressão e tirania de que nós próprios fomos alvo. Para esse fim, o TPI é especialmente útil". Em absoluta contradição com esta opinião avisada, a celebração do acordo espúrio de limitação de extradições para o TPI, correspondendo às pretensões ilegais dos Estados Unidos, é um óbvio precedente de desvalorização da jurisdição internacional. Fragiliza, por isso, a posição dos defensores da centralidade dos direitos humanos na reconstrução de Timor. Não honra a lição timorense de luta pelo Direito e pela justiça internacionais.

 
 
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José Manuel Pureza