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06-04-2003        Diário de Notícias
Nós, os que estamos decididamente na oposição a esta guerra, suportamos a custo certas críticas e acusações do discurso oficial e seus comentaristas de serviço.
Dentro desta guerra global há uma guerra argumentativa contra o pacifismo. Como aquela que mata indiscriminadamente no Iraque, também esta está longe de ser uma guerra limpa. Insidiosamente, tenta-se fazer passar que pacifismo e cobardia são gémeos e que por trás de cada pacifista há um potencial terrorista, tal o ódio que os pacifistas têm aos Estados Unidos.
Como todas as guerras, também esta é insuportável. E sobretudo ofensiva para o que recebemos do passado e que é hoje o que há de melhor na humanidade. Woodrow Wilson, Luther King ou Eleanor Roosevelt são verdadeiras vítimas colaterais desta guerra e da cegueira fundamentalista dos seus mentores. E essa é uma das principais tragédias do nosso tempo: que se promova a militarização da vida internacional e se faça crer que o mundo avança com as guerras e não com o empenho de homens e mulheres em as desfazer.
Dizem que entre tirania e democracia tomámos partido pela primeira. Não é de crer que seja sincera esta censura dirigida a combatentes da liberdade que nos orgulhamos de ser. Trata-se apenas de uma forma ardilosa de fugir ao verdadeiro dilema que se situa na opção entre paz e guerra. Os que legitimam a guerra em nome da democracia estão afinal a abater um dos dogmas tidos por adquiridos: as democracias não fazem a guerra. Isso que parecia ser uma verdade historicamente comprovada está agora dramaticamente desmentido. Uma democracia teve a iniciativa de uma guerra de agressão e ocupação, disfarçada de preventiva.
Alguns dirão que é uma guerra compreensível, determinada pelo tropismo defensivo da hiperpotência agredida no 11 de Setembro. Acusam-nos precisamente de silenciar esse acontecimento maior e de não integrar nas análises a natural reacção do orgulho ferido e da ameaça à segurança no interior do próprio território. A verdade é que esta guerra estava nos planos dos neo-conservadores norte-americanos muito antes do 11 de Setembro de 2001, pelo menos desde 1997, quando se organizaram no "Project for a New American Century". Isso não é, todavia, o mais importante. O que lamentamos é que esse crime de terrorismo inqualificável - que não foi apenas crime contra os EUA, mas contra a humanidade, porque seres humanos foram usados como projécteis vivos e porque Nova Iorque (tal como Bagdad...) é uma cidade-mundo - não fosse presente a uma jurisdição internacional e os responsáveis do terror punidos pela comunidade mundial no seu conjunto. Perdeu-se assim a oportunidade histórica de activar para o efeito o Tribunal Penal Internacional, fazendo prevalecer a justiça sobre a vingança (o que, seja dito, é atributo e fundamento da civilização). É preciso que se diga bem claro: a liderança dos Estados Unidos está a fazer recuar décadas o edifício construído por gerações, está a minar os nossos fundamentos civilizacionais.
Alguns argumentam com o antecedente histórico bem clássico: Munique, o capitatulacionismo face a Hitler, a cobardia dos "pacifistas" perante a ameaça das ditaduras. Como se a resistência ao nazismo tivesse alguma analogia com a situação presente! O Iraque era um país bem mais ameaçado que ameaçador, com a sua soberania gravemente limitada por embargos comerciais e zonas de exclusão aérea sujeitas a bombardeamentos sistemáticos.
Admitamos que Saddam Hussein tivesse ou tenha armas de destruição em massa, apesar de a CIA nesse aspecto contrariar de há muito a célula de "inteligência" do Pentágono (esta tinha fontes de informação, designadamente o Congresso Nacional Iraquiano sedeado em Londres, que a CIA considerava pouco credíveis). Seja como for, a existência de armas de destruição em massa é um problema seriíssimo que não pode ser ignorado nem subestimado. A questão está em que o desarmamento não deve ser decretado unilateralmente, nem muito menos servir de pretexto para inconfessados desígnios geo-estratégicos e geo-económicos. Foi a percepção disso que levou à erosão do apoio diplomático às posições norte-americanas. Ao invocar a pretensão de desarmar unilateral e violentamente o Iraque, os EUA sabotam os esforços passados e futuros no sentido de um desarmamento multilateral assumido vinculativamente pela comunidade das nações.
Será esta uma posição "pacifista"? Dentro do vastíssimo campo mundial anti-guerra (anti-esta-guerra) há seguramente grande diversidade de posições, algumas delas literalmente pacifistas, no sentido em que se opõem a qualquer forma de violência, logo também a esta. Pela nossa parte não temos ilusões quanto à possibilidade de estabelecermos uma convivência internacional isenta de violência. Julgamos que o mundo continuará regido em grande parte pela correlação de forças. Todavia a construção da paz é um dos objectivos centrais do nosso compromisso de cidadãos. Certamente por razões éticas e por motivações humanitárias. Mas também e cada vez mais por motivos políticos, por fundamentos técnicos, por análises estratégicas. Não só em nome da perigosidade dos arsenais disponíveis. Não apenas pela surpreendente ineficácia do poderio militar para atingir objectivos políticos. Mas sobretudo porque consideramos historicamente possível e logicamente desejável que o sistema internacional seja regulado por normas comummente aceites, onde a força da lei prevaleça sobre a lei da força e onde o inevitável exercício da violência esteja subordinado a códigos de conduta. Como vimos, gerações e gerações têm posto o melhor da sua inteligência e do seu engenho em desenhar e pôr de pé essa arquitectura de um mundo habitável. Contra o conformismo de muitos "realistas", tem avançado esse percurso de civilização. Talvez a paz tenha deixado de ser impossível para se tornar obrigatória. Mas tudo fica mais difícil quando a grande nação americana se deixa governar por uma oligarquia que sacrifica estes ideais universais às suas ambições e aos seus interesses.

 
 
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José Manuel Pureza