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15-07-2004        Diário de Coimbra
Na genealogia da democracia portuguesa há famílias várias. Os "católicos progressistas"; são uma dessas famílias. Deve-se-lhe a coragem de ter rompido com um dos pilares socialmente mais enraizados do salazarismo: a identificação entre missão da Igreja e defesa do regime. E de ter aberto janelas de diálogo com o mundo da modernidade e do pluralismo que não se revia no conservadorismo bafiento e repressivo que reinava no país.
Como em todas as famílias, os nomes são muitos e as gerações são diversas. Mas Maria de Lourdes Pintasilgo é inquestionavelmente a referência maior de todo esse universo. Não se fará seriamente registo histórico da mudança de mentalidades no Portugal do século XX sem colocar Maria de Lourdes Pintasilgo no centro dessa dinâmica de transformação cívica e cultural. Creio que, acima de tudo, ela encarnou o próprio arrojo do fenómeno nuclear da sua geração de católicos: o Concílio Vaticano II. Na esteira dessa escola de formação intelectual que foi a Acção Católica, Maria de Lourdes Pintasilgo deu corpo a uma articulação exigente e criativa entre o "ver"; (a leitura aberta e rigorosa da realidade), o "julgar"; (a centralidade da ética e a densificação dos seus critérios de juízo) e o "agir"; (a transformação social como teste último da condição crente). Maria de Lourdes expressou essa articulação de forma ímpar, fazendo da sua vida uma plataforma de fecundação recíproca do saber e da emoção; da ciência, da arte, da religião, da política e da poesia; do global e do doméstico. E sempre, mas sempre, sonhando "coisas que nunca foram"; (como lembrou há dias o Adelino Gomes) e acolhendo, entusiasmada, "caminhos que não são os tradicionais"; (como ela própria sublinhou na sua última presença pública, no frustrado conselho a Jorge Sampaio sobre a crise política em que o país foi atolado).
O Portugal rasteirinho nunca lhe perdoou a ousadia de entrar no "mundo deles";, de denunciar por inteiro a indissociabilidade entre as expressões públicas do poder e a sua manifestação patriarcal e sexista. Esse Portugal da conservação dos interesses e do assobio para o ar nunca lhe desculpou a desfaçatez de trazer poesia para o debate político ou de introduzir linguagem e agendas inexplicavelmente refrescantes – que as Nações Unidas ou a UNESCO conheciam há muito mas que, em Portugal, eram ainda matérias tabu – para a nossa reflexão política. Esse Portugal de senhoritos que se põem em bicos de pés para serem serventuários do império na Europa nunca lhe reconheceu a grandeza de um notável curriculum internacional, onde pontuam a coordenação da Comissão Mundial sobre População e Qualidade de Vida, a presidência do Comité de Sábios "Para uma Europa dos Direitos Cívicos e Sociais";, ou a qualidade de membro do Clube de Roma.
A essa estratégia de esquecimento a que foi votada, Maria de Lourdes Pintasilgo respondeu com uma insistência tenaz no anúncio da ética do cuidado como sustentáculo da governabilidade e da dignidade no século que agora entra. No relatório "Cuidar o Futuro";, referência imprescindível para uma reflexão política e moral em tempo de globalização, Maria de Lourdes Pintasilgo recordava a lição de Gandhi, para quem a política não era mais que um gesto amoroso para com o povo. Ela sabia do que falava, ou não tivesse o seu "governo dos 100 dias"; abraçado por inteiro a universalização da segurança social como direito básico num país com tantos pobres. Apontava, pois, a uma mudança radical: "enquanto a hipertrofia do mercado tem absolutizado a melhoria das condições materiais da existência e o contínuo aumento da produção e tem reforçado continuamente a concentração sobre o ‘eu’, a recentragem da política sobre a ética do cuidado dará densidade a uma dinâmica de comunicação e de parceria em vista de alguns objectivos indeclináveis: acabar com a pobreza, restringir o desperdício de recursos, promover a qualidade de vida dos outros".
Como mulher, como cidadã, como intelectual, esteve sempre incomodamente para além dos cânones. Por isso, para ela "a grande empresa não é o plano pensado e repensado, a estrutura gigantesca que, com os seus tentáculos, tudo vai abafar, nem a mentalidade renovada, adaptada, ajustada, conformada. A grande empresa é mudar a vida";.
Lembrava ela de Sophia, um dia antes de morrer, que a poeta não quisera menos do que "um país liberto, uma vida limpa, um tempo justo";. Escreveu, sem o adivinhar, o mais apropriado dos epitáfios para si própria.

 
 
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José Manuel Pureza