Privatizações, desde a revisão constitucional que as facilitou, tem havido muitas: as visíveis, que em vários casos começaram por ser parciais para depois passarem a totais, e as invisíveis. As visíveis parecem ter acabado de momento, desde logo porque já não há muito a privatizar e porque a agenda privatizadora da Direita foi travada a tempo pelos acordos entre os partidos que sustentam o governo atual.
Façamos uma observação atenta ao que se tem passado, começando por identificar o rasto que as privatizações visíveis deixaram. Algumas das empresas privatizadas em vários sectores já nem sequer existem. A banca pública foi entregue a grupos e capitalistas portugueses, que em muitos casos fizeram chorudas negociatas a favor de interesses particulares, e está hoje na mão de bancos estrangeiros no contexto de um processo europeu de concentração da banca e de prosseguimento da financeirização da economia. No conjunto das privatizações visíveis até temos a EDP e a REN entregues a um grupo empresarial público chinês. Outras foram parar a capitais de origem ou sustentabilidade duvidosa, como são os casos: Fidelidade-Fosun, Cimpor-Camargo Correia, PT-Altice, BES-Lone Star, TAP-Atlantic Gateway. Os problemas com estes novos donos de antigas empresas públicas portuguesas começam agora a emergir e podem tornar-se muito perigosos.
Quanto às privatizações menos visíveis ou invisíveis, todas passam por processos em que o Estado compra a privados bens e serviços que anteriormente ele próprio produzia, ou poderia vir a produzir. Vejamos alguns exemplos. i) Estradas. Encomenda-se a privados uma estrada chave-na-mão. Depois o Estado e os automobilistas ficam a pagar renda, cumprindo contratos altamente favoráveis aos privados. ii) Saúde. Os serviços vão sendo exauridos, não se faz investimento em nome da redução da despesa, os profissionais são sobrecarregados e maltratados e, direta e indiretamente, encaminham-se os doentes para laboratórios, hospitais e consultórios privados. Depois o Estado comparticipa. iii) Educação. Na escola pública, reduz-se o número de professores e de pessoal não docente, desprestigiam-se e sobrecarregam-se professores com tarefas burocráticas, formata-se a direção das escolas para lógicas de gestão economicista, aumenta-se o número de alunos por turma, eliminam-se atividades de enriquecimento curricular, colocam-se alunos em escolas privadas. Depois o Estado paga. iv) Cantinas escolares e refeitórios. Contrata-se o fornecimento a empresas. Depois o Estado faz contas, mas, entretanto, não dá atenção à qualidade.
Já todos ouvimos a Direita falar das vantagens do estado mínimo. Mas, será que já todos nos interrogamos acerca das razões pelas quais apesar de tanta conversa sobre o estado mínimo, o Estado nunca encolhe mesmo com governos de Direita? A razão é simples: o estado mínimo de que a Direita fala na realidade é estado máximo quanto à socialização das faturas que os privados lhe apresentam. Os portugueses acabam por pagar elevados preços por bens e serviços fundamentais agora entregues a negócios privados que o Estado tem de garantir.
Na Constituição de 1976 podia ler-se: Para assegurar o direito à proteção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado… Orientar a sua ação para a socialização da medicina e dos sectores médico-medicamentosos. A partir da revisão de 1989 a frase em itálico foi substituída por “Orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos”. Na altura, porventura não se deu a atenção devida. Mas quem impôs a emenda sabia muito bem o que estava a fazer: estava a socializar os custos, isto é, a criar condições para que os serviços de saúde privados se expandissem, à custa da subsidiação pública.
Ficamos melhor assim porque os privados são mais eficientes? Não brinquem. Os êxitos das empresas que atuam na provisão de bens e serviços que incubem ao Estado, resultam acima de tudo da existência de um “mercado” cativo garantido pelo mesmo Estado.
Se alguma coisa é preciso fazer na segunda parte do mandato do atual governo é exatamente dar passos na direção do fim desta socialização dos custos. A começar pelo sector da saúde.