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27-04-2006        Campeão das Províncias
A Europa como projecto político é acima de tudo a materialização de uma certa ideia de paz. Não é uma ideia recente na História. Dante, Sully, Abbée Pierre ou Kant foram precursores de um entendimento da paz ancorado na superação das tensões da diversidade pela unidade dos diferentes. Nesse sentido, pode dizer-se que a lógica de inspiração federalista (embora não necessariamente sob essa designação) marcou, desde sempre, o sonho da paz europeia.
Somos hoje legatários desse velho projecto de paz para a Europa. E se recuarmos ao fim da II Guerra Mundial, talvez possamos figurar em duas organizações europeias então criadas uma dúplice concretização desse velho projecto. De um lado, o Conselho da Europa, guardião da democracia parlamentar, do Estado de Direito e do primado dos direitos humanos como património comum dos europeus. Esse é o pólo da paz pela democracia e pela lei. Do outro lado, a Comunidade Europeia e a prioridade conferida ao derrube de fronteiras à circulação de mercadorias e de capitais. Esse é o pólo da paz pelo comércio e pelo mercado. Convergindo num europeísmo indefectível, os projectos de Europa edificados em Estrasburgo e em Bruxelas nunca foram efectivamente coincidentes: um vê-a emergir da adopção de um código comum (a Convenção Europeia de Direitos Humanos) e de uma fórmula institucional comum (a democracia parlamentar) entre os Estados europeus; outro vê-a fundar-se na progressiva fusão dos mercados e na aproximação de normas e de processos que a integração das economias pragmaticamente impõe. Monnet e Schuman intuíram o horizonte de convergência desses dois pólos na combinação entre desenvolvimento e democracia. Devemos-lhes isso. E, com isso, a paz em que a Europa assente naqueles dois pilares ideológicos e institucionais tem vivido nas últimas décadas.
Mas confiar em que esta integração europeia é automaticamente sinónimo de paz é ingenuidade perigosa. Convirá lembrar que esta Europa foi se cimentou numa contexto circunstancial determinante: a guerra fria. E que não fora esse contexto singular e as dinâmicas de desenvolvimento e de consolidação democrática não teriam ocorrido com a mesma consistência. Importa, pois, interrogar a estabilidade do projecto de paz europeu neste tempo de pós-guerra fria. Em meu entender, três desafios de primeira importância estão aí a exigir a máxima atenção.
O primeiro é o de saber se esse projecto é o de uma paz negativa ou é também, em igual plano, o de uma paz positiva. Quer dizer, a paz ambicionada para a Europa é a da ausência de guerras entre os países europeus ou a de um tecido social avesso à violência estrutural da injustiça e da assimetria de poder? No quadro actual da globalização neoliberal, são visíveis os sinais de retracção, ou mesmo de esvaziamento, do modelo social assente em serviços públicos de acesso universal e de efeito redistributivo da riqueza. E, sendo assim, é a paz social que está em risco. A rua francesa tem dado sinais evidentes desse apodrecimento da paz social às mãos da americanização ou mesmo da asiatização social da Europa.
O segundo desafio é o de saber que lugar há para a paz cultural na Europa. Porque não pode fazer-se apenas de paz física o projecto europeu. Nas nossas sociedades crescentemente multiculturais, paz é cada vez mais sinónimo de respeito escrupuloso pelas diferentes matrizes culturais que se combinam nas cidades da Europa, num intervalo difícil entre o assimilacionismo tutelar e o relativismo demissionista, como a recente polémica sobre as caricaturas de Maomé pôs em evidência. Este novo cosmopolitismo, que a alguns assusta e convida ao regresso às identidades fechadas do passado, é para outros estímulo a uma reinvenção do demos europeu e das políticas que lhe conformam a identidade.
O terceiro desafio é o da opção entre uma paz fechada e uma paz aberta. A Jugoslávia foi a denúncia dramática de que a Europa fortaleza é um projecto condenado ao fracasso. As periferias da Europa de paz – o Magreb, o Médio Oriente, o Cáucaso, os Balcãs, são territórios sísmicos em termos de segurança humana. A resposta da Europa acomodada tem sido a de comprar a contenção dessas periferias turbulentas com envelopes financeiros, com parcerias e com alargamentos condicionados. A paz europeia joga-se, pois, hoje muito mais no Estreito de Gibraltar e na Turquia do que propriamente no seu coração geográfico e nas suas redes de mobilidade internas.
Mais do que no estafado debate entre federalistas e soberanistas, é nestes testes práticos que a paz na Europa se ganhará ou se perderá.

 
 
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José Manuel Pureza